Quinta-feira, 29 de Junho de 2017

CADERNOS DO SUBTERRÂNEO (3)

 

NO REINO DO LAMAÇAL (o romance que nunca existiu)

 

TERCEIRA E ÚLTIMA PARTE

 

    E assim foi o tempo passando e todos aguardando a publicação mais do que certa do romance prometido por Guilherme de Freitas. E, enquanto esse evento não ocorria, eram muitas as iniciativas levadas a cabo pelas pessoas mais próximas de Guilherme de Freitas a respeito do seu almejado livro. Desde simples conversas informais sobre o mesmo  assunto, entre os que sabiam de tal promessa, a debates alargados em que tomavam parte críticos e investigadores literários. A princípio em cafés, locais de trabalho e residências particulares; pouco a pouco nos meios académicos e em espaços cada vez mais públicos. Passou-se entretanto a escrever em jornais e revistas acerca de Guilherme de Freitas, inicialmente de forma tímida e depois abundantemente. Escrevia-se sobre Guilherme de Freitas e com certeza acerca do seu romance. Nos círculos oficiais foi decidido apoiar discretamente Guilherme de Freitas, em todas as circunstâncias em que isso fosse possível. No país e no estrangeiro. As chancelarias receberam instruções nessa conformidade. O Governo apoiou informalmente alguns conhecidos intelectuais e amigos de Guilherme de Freitas que se mostraram disponíveis para a promoção e divulgação do nosso escritor. De entre esses intelectuais salientava-se, pela sua reconhecida capacidade, Arnaldo Banza, um grande amigo de Guilherme de Freitas. Diga-se que Arnaldo Banza não poupou esforços nem tempo em prol da consagração de Guilherme de Freitas, enquanto homem da cultura e autor de um romance cuja publicação se aguardava a todo o instante. 

     No meio de toda esta azáfama, em que Guilherme de Freitas era o protagonista incontornável, a notícia da sua morte caiu que nem uma bomba.  O falecimento de Guilherme de Freitas apanhou tudo e todos de completa surpresa. Nada fazia prever tal ocorrência. E no imediato todos pensaram unanimemente no livro que Guilherme de Freitas estava a escrever. Todos. Os amigos, os conhecidos e também os membros do Governo, em particular o primeiro-ministro. Assim sendo, havia que recuperar sem delongas o original desse romance. Havia que salvar sem perder tempo a honra e a palavra de Guilherme de Freitas. Havia que ter em conta o empenho e a reputação do Governo e de respeitáveis homens da cultura na defesa e divulgação do nome e da obra de Guilherme de Freitas. Havia enfim que corresponder à enorme expectativa das pessoas em geral, criada em torno da publicação do já famoso romance de Guilherme de Freitas.

      E foi assim  que, sob a égide do primeiro-ministro, se formou um grupo de trabalho, cuja missão quase sagrada era a de resgatar o original dessa obra literária e proceder à sua publicação tão depressa quanto possível. 

       Como já foi dito, logo a seguir ao funeral de Guilherme de Freitas os três homens de letras, que integravam o grupo de trabalho, deslocaram-se à que foi a última residência conhecida desse malogrado escritor, em busca do seu espólio literário e em particular do manuscrito do seu romance No Reino do Lamaçal. Levavam instruções rigorosas de darem conhecimento, em primeira mão, apenas e só ao primeiro-ministro, dos resultados das suas investigações, fossem quais fossem esses resultados. E assim foi. Contudo, poucas horas depois de terem entrado nessa habitação, dirigiram-se espavoridos ao gabinete do primeiro-ministro, que os recebeu de imediato. O governante, vendo-os de mãos vazias, perguntou cheio de curiosidade ao chefe da comissão Arnaldo Banza o que se estava a passar. Arnaldo Banza respondeu contristado: " Senhor primeiro-ministro, sou um homem esmagado pela desgraça!" 

      "Como assim?" - Quis saber o primeiro-ministro.

      "Não há romance nenhum, não há nada, senhor primeiro-ministro. Afinal de contas, Guilherme de Freitas era um fala-barato, um pantomineiro, um impostor, um trampolineiro, um parlapatão. Um homem que só tinha garganta. Em casa de Guilherme de Freitas, onde esperávamos encontrar uma arca cheia de manuscritos literários, o que encontrámos foram duas caixas de sapatos contendo papéis sem importância, tais como contas e facturas por pagar; notíficações judiciais para cobranças de dívidas, (que, diga-se de passagem, não eram poucas); cartas de amantes e de prostitutas a pedirem-lhe dinheiro. Cartas de mulheres da vida. Coisas assim. Ah, é verdade, já me ia esquecendo: havia também revistas e fotografias pornográficas. E do mais ordinário! Do mais obsceno! Do piorio! Está a ver, senhor primeiro-ministro? Era isso o que nos esperava. Repito: nada de interesse literário. Já viu, senhor primeiro-ministro, a situação grave e delicada em que me encontro? Eu, que tanto fiz por esse homem, eu que tanto escrevi e falei sobre ele e sobre o romance que ele nos convenceu de que estava a escrever! É a minha reputação que está em causa. É a minha honra e o meu prestigio que estão em jogo. O homem pura e simplesmente enganou-me, aldrabou-me, ludibriou-me, burlou-me. Estou perdido, senhor primeiro-ministro! Estou destruído! O que irão dizer de mim as pessoas? Vou ser objecto de chacota. Já viu isto, senhor primeiro-ministro?"

     O governante interrompeu neste ponto Arnaldo Banza: "Calma, calma, meu amigo. Não é só o senhor que está em apuros. O Governo também. E eu também. O país também. Ao fim e ao cabo, todos nós nos comprometemos pessoalmente, e não só, na promoção e enaltecimento de Guilherme de Freitas. Comprometemos também a nossa reputação em defesa desse homem. Alguma coisa se há-de fazer para sairmos todos desta trapalhada."

     "Fazer o quê, senhor primeiro-ministro, se não há nenhum romance?" - Perguntou de chofre o Dr. Arnaldo Banza, cortando a palavra ao seu interlocutor -  "Já disse a V. Excelência que não encontrámos nada na que foi a residência de Guilherme de Freitas. Nenhum sinal de um manuscrito fosse do que fosse. Nada! Absolutamente nada! Viemos dessa malfadada casa de mãos completamente a abanar".

      "Havemos de fazer alguma coisa, volto a dizer-lhe, homem!" - Respondeu o primeiro-ministro e continuou:  "Se não há romance, redige-se e publica-se um romance. Como? Sim, estou a ver que o meu amigo está confuso. Mas eu explico-lhe e vou começar pelo princípio. Há coisa de quatro meses o Governo recebeu duas informações fidedignas que nos deixaram de sobreaviso. Por um lado, e ao contrário do que Guilherme de Freitas tinha prometido, era bem possível que não houvesse qualquer romance, ou seja, o Guilherme pura e simplesmente não escrevera coisíssima nenhuma. E, por outro lado, o Guilherme estava muito doente do coração e provavelmente não iria viver mais do que dois ou três meses. Por tudo isso, ficámos apreensivos. Ficámos de pé atrás. Ficámos na retranca. E pensámos e dissemos todos em uníssono: algo tem de ser feito o mais depressa possível para não sermos apanhados de calças na mão. E fazer o quê? Além do mais, preparar um plano B. Sim, um plano B. Como deve calcular, a situação era melindrosa. Estávamos todos em maus lençóis. O assunto foi amplamente discutido e analisado em vários conselhos de ministros, nos dias que se seguiram. Foi então que alguém (não interessa quem) se lembrou em boa hora do seguinte: em Portugal, no resto da Europa e nos Estados Unidos existem pessoas (homens, sobretudo) capazes de escrever, em nome e a pedido de outrem, tudo o que se queira: romances, contos, novelas, poesia, biografias ou mesmo autobiografias, ensaios, teses académicas, enfim, repito, tudo o que se queira. São os chamados escritores-fantasmas. Estou a ver que o meu amigo, tal como eu, nunca tinha ouvido falar desse tipo de pessoas. Pois bem, é verdade, essas pessoas existem. Escritores-fantasmas, porque esses autores escrevem mas nunca aparecem. Nunca dão a cara. Os livros que escrevem são publicados mas eles, os verdadeiros criadores, ficam na sombra, no anonimato. Recebem os seus honorários sem qualquer documento comprovativo e esfumam-se. Nunca se saberá da sua existência. E fique sabendo que esses escritores-fantasmas são muito procurados. Clientes não lhes faltam e são da mais variada espécie: empresários, gestores, banqueiros, ex-diplomatas, políticos no activo e políticos reformados. Fala-se até de um ex-primeiro-ministro português, que já publicou dois livros cuja real autoria é um escritor-fantasma. Aliás também se diz que esse ex-primeiro-ministro não só gastou rios de dinheiro com o mesmo escritor-fantasma, mas também na compra de um número avultado de exemplares dos seus próprios livros. Para quê? Para criar a ilusão de que os seus livros eram muito procurados e tinham tido muito sucesso. Megalomanias!"

     "Mas, voltando um pouco atrás, você já deve estar a pensar (e bem) que o nosso plano B era nada mais nada menos que o trabalho de um escritor-fantasma. Sim, o escritor-fantasma era e é a nossa salvação. Acontece até que temos em Lisboa dois amigos portugueses que são também amigos do nosso país. Trata-se de pessoas muito influentes e com ligações a escritores-fantasmas. Podem contactar um escritor-fantasma e tratar de tudo. De resto, já o fizeram. Que amigos são esses? São eles a jornalista Olinda Leão e o professor universitário reformado, Câncio Condottieri. Repito: são grandes amigos do nosso país."

      "Você deve conhecer muito bem a Olinda Leão, pois ela esteve cá há um tempo atrás como cooperante. Depois de regressar a Portugal, passou a ser colaboradora regular de um dos nossos jornais. Foi sempre uma amiga devotada do nosso país. Uma autêntica Madre Teresa do nosso país. O que ela não fez pela nossa Pátria! Entretanto, e sem mais nem porquê, as suas crónicas deixaram de ser publicadas. Sumiram-se. Nem ela se despediu dos leitores nem o jornal deu qualquer explicação para a ausência dos seus artigos. Uma falta de consideração e respeito por ela e pelos leitores desse jornal. Mas adiante."

        "Quanto a Câncio Condottieri, esse, esteve exilado no nosso país por razões políticas. Bem entendido, éramos então uma colónia portuguesa. E durante o exílio, que se prolongou por cerca de dois anos, Câncio Condottieri exerceu cá a sua profissão de contabilista. Era então um homem simples e despretensioso, ou, melhor dizendo, aparentava ser um homem simples e despretensioso. Aparentava ser aquilo que na verdade era: um contabilista. A revolução do 25 de Abril de 1974 apanhou-o já em Portugal e, depois disso, o homem mudou imenso. Ao que se diz por aí, a revolução subiu-lhe à cabeça. Da noite para o dia o indivíduo foi sendo uma série de coisas. Foi-se metamorfoseando ao longo dos anos que se seguiram à referida revolução do 25 de Abril. Tornou-se um verdadeiro homem dos sete ofícios. Quer exemplos? O Câncio foi fundador de partidos políticos, gastrónomo (especializado em receitas de bacalhau, com livro publicado e tudo), economista, gestor público e privado, editor, ensaísta, escritor, fundador e professor de universidades privadas para a terceira idade, conselheiro disto e daquilo, apresentador e prefaciador de livros escritos por autores de segunda linha, como amanuenses e quejandos, enfim uma mão-cheia de profissões e de actividades. Já sei, pela expressão do seu semblante, no que o Dr. Arnaldo Banza está a pensar. Está a lembrar-se daqueles problemas que Câncio Condottieri teve quando foi administrador de uma empresa pública lá para os anos noventa, ainda no tempo das vacas gordas. O Dr. Arnaldo Banza se calhar pensa que eu já estava esquecido desses episódios. Não, não me esqueci. Você tem razão. Parece que as coisas não correram lá muito bem a Câncio Condottieri nesse passo da sua vida e as culpas foram todas suas. O homem não fez a coisa por menos. Fez mau uso do cartão de crédito da empresa, tendo até comprado, entre outras coisas, roupa interior feminina, presumivelmente para a esposa, com o dito cartão de crédito. Roupa interior feminina? Sim, isso mesmo: cuecas, sutiãs e combinações. Vem tudo escarrapachado no jornal NOTÓRIO da época. O sujeito nunca respondeu às imputações que esse periódico lhe fez e acabou pouco tempo depois, ingloriamente e no maior dos silêncios, por se demitir do lugar. Quem cala, consente, lá diz o ditado popular e com muita razão." 

     "Bem, mas isso agora são águas passadas e, além disso, já pouca gente se lembra das travessuras desse cavalheiro. Aliás, as nossas relações com Câncio Condottieri nunca se interromperam e por isso servimo-nos dele e da Olinda Leão agora para nos arranjarem um escritor-fantasma, que irá escrever o romance em nome de Guilherme de Freitas. A nossa embaixada encarregou-se de os contactar, ao Câncio e à Olinda, e está tudo a postos. Só falta o Dr. Arnaldo Banza partir para Lisboa e ir fazer a sua parte. Que parte? Irá ter as conversas que forem necessárias com o escritor-fantasma (escolhido pelos nossos amigos Câncio e Olinda) e pô-lo ao corrente, em linhas gerais, de todo o conteúdo do romance, coisa que, bem entendido, só o meu amigo está em condições de fazer. Não é por acaso que Você se especializou nessa obra, que pelos vistos nunca existiu, de Guilherme de Freitas. Com esses elementos acerca do livro, o nosso escritor-fantasma porá de imediato mãos à obra e ao fim de algum tempo teremos atingido o nosso objectivo, ou seja, teremos o romance No Reino do Lamaçal escrito e publicado. Aliás quem se irá encarregar da edição da obra é o nosso amigo Câncio Condottieri." 

      "Meu caro Dr. Arnaldo Banza, prepare-se para partir para Lisboa o mais depressa possível e ir colaborar na ressurreição desse romance que Vocé já  tinha dado por morto. Escusado será dizer que tudo o que aqui foi dito é estritamente confidencial e deverá ser considerado segredo de Estado. Nesse sentido, a notícia que irá ser a partir de agora divulgada pela comunicação social é a de que o original do romance No Reino do Lamaçal  foi efectivamente encontrado, tal como estava previsto, e que esse original vai ser tratado por si, Dr. Arnaldo Banza, com vista à sua publicação com a maior brevidade. Vamos contar uma história completamente diferente da real e verdadeira. Vamos contar a nossa história. Não há tempo a perder e, por outro lado, fique ciente do seguinte: o Governo saberá recompensar devidamente aqueles que nesta hora difícil já deram e vierem a dar o melhor de si em prol da honra e do bom nome da nossa Pátria. Vou terminar voltando a citar um ditado conhecido e cheio de sabedoria: Os amigos certos conhecem-se nas horas incertas."

     De facto, Arnaldo Banza viajou para Lisboa uma semana depois e, uma vez chegado à capital lusa, cumpriu rigorosamente todas as indicações que levava quanto aos contactos a estabelecer a fim de o romance No Reino do Lamaçal ser escrito por um escritor-fantasma e, logo a seguir, publicado. A publicação e apresentação do livro ocorreram dois anos depois, nas circunstâncias que já foram relatadas, e porque os leitores as conhecem muito bem, não há mais nada a acrescentar a tal respeito.

     Entretanto, e após uma longa viagem em espírito pelo passado, regressei ao presente. A sala onde tivera lugar a apresentação do romance No Reino do Lamaçal, supostamente da autoria de Guilherme de Freitas, esvaziara-se sem eu ter dado por isso. Umas empregadas preparavam-se para proceder à limpeza do espaço e arrumação do mobiliário provavelmente para o lançamento de mais um livro ainda nessa mesma tarde. Deixei o lugar em direcção à saída do centro comercial. Pelo caminho notei que os altifalantes do LUXOR transmitiam a magnífica voz de Shirlley Bassey, interpretando More (Riz Ortolani & Nino Oliviero), canção-tema de MUNDO CÃO, filme italiano de 1962, da autoria de Paolo Cavara, Gualtero Jacoppeti e Franco Prosperi. FIM

 

 

     NOTA FINAL

     A história acabada de contar é pura ficção. Por isso, qualquer semelhança com pessoas e as mais diversas situações, nela retratadas, é mera coincidência. Pura ficção, disse eu? Se non è vero, è bene trovato.       

                           

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

               

publicado por flagrantedeleite às 08:03
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