Sábado, 29 de Abril de 2017

CADERNOS DO SUBTERRÂNEO (1)

NO REINO DO LAMAÇAL (o romance que nunca existiu)

 

PRIMEIRA PARTE

 

Vós, que disputais o Mundo, podeis dormir descansados: tendes menos um concorrente.

Epitáfio de Guilherme de Freitas, o herói da história que a seguir se vai contar.

 

     A pouco e pouco a sala enche-se de homens e mulheres de todas as idades. É uma plateia constituída por assistentes, potenciais leitores, convidados e jornalistas. E também por simples curiosos. A entrada é livre. Todos, devidamente acomodados, estão virados para uma mesa rectangular, colocada ao fundo da sala, onde se sentam três homens, e em cima da qual se vêem pilhas do mesmo livro. Aproxima-se das três da tarde de um frio sábado de Dezembro.

      Estamos na livraria APMART, do Centro Comercial LUXOR, e o motivo desta reunião de pessoas prende-se com o lançamento do romance No Reino do Lamaçal, uma obra póstuma de Guilherme de Freitas, escritor falecido há cerca de dois anos. A apresentação está a cargo do seu conterrâneo, o conhecido intelectual e literato, Arnaldo Banza, que, aliás, prefaciou e anotou o dito livro. Do lado esquerdo de Arnaldo Banza, senta-se o editor Câncio Condottieri, e no lado oposto, Tolentino Fortes, poeta e um dos muitos ex-amigos e confidentes de Guilherme de Freitas.

      O apresentador foi introduzido pelo editor Câncio Condottieri. Este é um homem bem entrado na idade, com toda a certeza nos seus oitenta e muitos; gordo e balofo, com um triplo queixo que lhe desce em cascata pelo pescoço abaixo até se meter no colarinho apertado. A tez é pálida; os cabelos, brancos e cada vez mais raros; os bigodes farfalhudos, embora também encanecidos, ainda fazem lembrar as suas origens no tempo -- os anos setenta do século XX. Câncio Condottieri, tal como os seus bigodes, é um homem petrificado no tempo. (Mais à frente voltaremos a Câncio Condottieri, com pormenores adicionais relativos à sua trajectória pessoal, política, académica e profissional).

      Câncio Condottieri começou por frisar a circunstância de Arnaldo Banza, o apresentador do livro, ser um grande conhecedor e especialista da obra de Guilherme de Freitas, muito em particular do romance que ora se lançava. Câncio Condottieri fez também questão de sublinhar que, sobre esse romance, Arnaldo Banza muito havia escrito, e também falado em palestras, debates, colóquios, congressos, seminários, um pouco por todo o lado: na rádio, na televisão, em jornais; nas empresas (para patrões e trabalhadores), nas escolas básicas, nas secundárias, e sobretudo nas universidades (nos três casos, para professores e alunos); no seu país natal e por esse mundo fora. Textos de Guilherme de Freitas preenchiam agora selectas literárias do ensino secundário do seu país, ao lado de respeitáveis confrades. Tudo por empenhada iniciativa de Arnaldo Banza. Este chegou mesmo a propor e a patrocinar, com o apoio discreto do governo do seu país, a candidatura de Guilherme de Freitas a dois importantes prémios internacionais de literatura, prometendo em ambos os casos, a indicação futura das obras de Guilherme de Freitas, logo que elas fossem publicadas. Este pequeno detalhe, a falta de obras literárias conhecidas de Guilherme de Freitas, inviabilizou por completo a apreciação pelos júris da sua candidatura a tais prémios. Apesar disso, Arnaldo Banza ainda pediu com alguma insistência o adiamento da atribuição dos referidos galardões até que os livros de Guilherme de Freitas viessem a lume, mas os seus pedidos nem sequer receberam qualquer resposta.

     Já não foram tão mal-sucedidas as diligências de Arnaldo Banza no sentido de ver Guilherme de Freitas admitido, primeiro como membro da Associação dos Escritores e posteriormente como sócio da Academia das Letras do seu país. A despeito de se desconhecer a Guilherme de Freitas qualquer prova da sua alegada  qualidade de escritor, isto é, nem artigos, nem ensaios e, muito menos, um ou outro livro publicado, as direcções daquelas ilustres e prestigiadas agremiações não hesitaram um segundo que fosse na decisão de deferir um tão honroso pedido de admissão no seu seio. Aliás, Guilherme de Freitas integrava uma longa lista de escritores, sem qualquer obra publicada, que as mesmas confrarias aceitavam como membros. Muitos desses escritores  teriam quando muito publicado, em jornais e revistas, um ou outro poema, um ou outro conto, um ou outro artigo, e isso bastava para serem reconhecidos como escritores  e com direito a figurarem em antologias e tudo.

    Câncio Condottieri fez ainda notar que se Guilherme de Freitas era hoje um escritor conhecido e reconhecido no plano internacional, apesar de No Reino do Lamaçal ser uma obra póstuma e a primeira e única a ser publicada desse autor, tal facto resultava em grande medida do trabalho esforçado e meritório de divulgação que Arnaldo Banza levara a cabo, acerca de Guilherme de Freitas, muito antes e também depois do falecimento deste último.

     Mesmo sem a publicação dessa obra e, portanto, sem sequer a ter lido, Arnaldo Banza conhecia No Reino do Lamaçal como à palma da sua mão. Isto sucedia porque, entre outras razões, foram incontáveis as conversas que os dois intelectuais e literatos haviam tido e em que o escritor punha o seu confrade a par de todos os pormenores do livro, dos quais, de resto, só ele, o autor, sabia ou podia saber, com conhecimento de causa. Deste modo Arnaldo Banza foi-se inteirando de tudo acerca desse monumento literário que era e é No Reino do Lamaçal  -- do enredo completo às passagens mais significativas, sem esquecer quaisquer minudências, passando pela enumeração e descrição das personagens, os seus nomes, as suas profissões, as suas idiossincrasias, as suas relações amorosas, pessoais, familiares, etc, etc. Arnaldo Banza também estava ciente do número de capítulos e de páginas do livro. Ou seja, e concretizando, a obra distribuia-se por 350 páginas, estas divididas por um prólogo, vinte e cinco capítulos e um epílogo. Todas estas preciosas indicações teriam sido registadas mentalmente ou por vezes em apontamentos escritos por Arnaldo Banza. E tudo isto permitiu que Arnaldo Banza pudesse falar e escrever com enorme autoridade sobre Guilherme de Freitas e a sua notável criação que era No Reino do Lamaçal. E convém que fique claro: pudesse falar e escrever muito tempo antes de tal obra ter sido dada à estampa e sem nunca, nem ele nem ninguém, lhe terem posto a vista em cima.

     À medida que ia ouvindo o que o editor Câncio Condottieri dizia a seu respeito, Arnaldo Banza aprovava essas palavras com movimentos afirmativos da cabeça e, vá lá, com um indisfarçável orgulho, patente no brilho intenso dos seus olhos e no leve sorriso dos seus lábios. Arnaldo Banza parecia um homem feliz.

          Seguiu-se a intervenção do apresentador do livro. Arnaldo Banza começou por se referir à longa e fiel amizade que o ligou ao falecido Guilherme de Freitas. Falou das confidências que o escritor lhe fazia, dos seus altos e baixos da vida, dos seus pequenos problemas pessoais e profissionais, até dos seus amores falhados. A este propósito, e num pequeno aparte, acrescentou que Guilherme de Freitas foi até morrer uma espécie de celibatário militante e homem avesso a todo e qualquer tipo de ligações permanentes a mulheres. Viveu sempre solitário e entregue a convívios muito seleccionados. E viveu também afastado e um pouco à margem, ou aparentemente à margem, da sociedade, residindo quase sempre em casas modestas e situadas em bairros suburbanos pobres e mal-afamados da capital.

          Havia contudo um lado um tanto sombrio em Guilherme de Freitas que Arnaldo Banza, por amor à verdade, mas com um certo constrangimento, não podia omitir. Tratava-se das relações de Guilherme de Freitas com o álcool, ou, melhor dizendo, da sua dependência das bebidas alcoólicas, um vício que quase lhe arruinou a vida pessoal, profissional e literária. E que, bem vistas as coisas, poderia ter estado na origem da sua morte inesperada e um tanto precoce. E era em noites regadas pelo álcool que Guilherme de Freitas transformava os seus interlocutores e companheiros de boémia em confidentes quase íntimos.

          E foi precisamente numa dessas noites que Guilherme de Freitas de repente começou a anunciar que estava a escrever um romance. (Tratava-se de mais uma das suas confidências e que, por razões óbvias, deixava os seus interlocutores vaidosos e cheios de orgulho. Sim, não era qualquer um que se podia gabar de ser amigo e confidente de Guilherme de Freitas!) Este, depois de proclamar que estava em curso o seu projecto de escrever e publicar um romance, acrescentava acto contínuo e invariavelmente que o livro iria ser uma contundente sátira social e política, que iria arrasar de alto a baixo a sociedade do seu país, sobretudo a sociedade da capital, que ele conhecia muito bem e com a qual há muito almejava um ajuste de contas. Sim, isso mesmo, um  impiedoso ajuste de contas com os hipócritas, os cínicos, os falsos, os oportunistas, os videirinhos, os vira-casacas, os colaboracionistas, os vendidos, os difamadores, os caluniadores, os sacadores de reformas portuguesas, os amanuenses com pretensões a escritores, as enfermeiras com pretensões a romancistas, enfim, toda essa fauna que abundava na sua terra, que pululava à sua volta e pela qual sentia um enorme desprezo. E, como se tudo isto não bastasse, tratava-se, segundo Guilherme de Freitas, de um povo de pobres, ignorantes, atrevidos e mal-agradecidos! Por isso tudo decidiu desde o início dar a essa obra um título forte e impressivo e sem esquecer que uma certa originalidade seria obviamente indispensável. Numa palavra, seria  um título à altura das intenções satíricas e sarcásticas do livro. Em consequência, o título escolhido era nada mais, nada menos do que No Reino do Lamaçal, título que, segundo o próprio autor, dizia tudo. E Guilherme de Freitas completava a confidência, dando a saber os seus planos e o mais veemente desejo de o livro ser apresentado em primeiríssima mão na Cidade Antiga.

                 Na Cidade Antiga? Sim, nessa mesma, meus caros leitores. E porquê na Cidade Antiga? Porque seria uma justa homenagem que iria prestar à primeira capital do seu país e berço sagrado da nacionalidade. Isto sem esquecer a sua condição de Património da Humanidade, muito recentemente reconhecida pela UNESCO, e que deixou envaidecidos todos os seus compatriotas e, por maioria de razão, todos os dirigentes políticos e partidários do país, sem qualquer excepção, do Governo e da Oposição. E Guilherme de Freitas costumava lembrar que, nessa precisa ocasião, e logo que a notícia foi conhecida, o mais alto magistrado da Nação chegara mesmo a interromper os seus afazeres quotidianos para, inesperadamente, pelas onze horas da manhã de uma terça-feira, se dirigir ao país, pela rádio e televisão, em discurso inflamado e comovido; discurso em que foi exaltada a grandeza da pátria e a grandeza dessa jóia arquitectónica, desse manancial inesgotável de relíquias arqueológicas, mundialmente conhecido e que constitui a Cidade Antiga. (Continua)  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

       

 

 

 

 

 

 

 

 

     

 

 

 

 

          

 

 

 

 

           

publicado por flagrantedeleite às 11:46
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