Sexta-feira, 24 de Janeiro de 2014

QUINTA EPÍSTOLA DE UM ALEMÃO AOS MERIDIONAIS DA EUROPA

Homo sum, humani nihil a me alienum puto. (Sou homem e nada do que é humano me é estranho.) Verso do comediógrafo e poeta, de expressão latina, Terêncio (195 ou 185 - 159 AC), e de que Karl Marx fez a sua divisa. 

 

 

Divisa de certos sectores da sociedade portuguesa, à esquerda, ao centro e à direita, em suma, dos que pululam à volta do Estado, esganando-o e esmifrando-o:

 

Ninguém arreda pé! Os vindouros que paguem a factura!  

 

 

 

IF YOU DON'T HAVE A OIL WELL...GET ONE! (SE NÃO TEM UM POÇO DE PETRÓLEO...ARRANJE UM!) Escrito num outdoor de estrada, nos Estados Unidos, e mostrado no início do filme O Cowboy da Meia-Noite (1969), de John Schlesinger.

 

 

Carissímos irmãos do Sul

 

 

PORQUE RESISTEM OS PORTUGUESES À CRISE? EIS COMO SE TENTA RESPONDER À PERGUNTA, ATRAVÉS DE UM DIÁLOGO MAIS OU MENOS IMAGINÁRIO.

 

   

    Como deveis calcular, aqui na Alemanha temos vindo a seguir com redobrada atenção os acontecimentos de Portugal. Parafraseando a divisa do meu compatriota Karl Marx, acima transcrita, diríamos o seguinte: somos europeus, e nada do que é europeu nos é estranho. Além disso, a atenção que nos merecem os portugueses tem a ver com o facto de o nosso dinheiro estar em jogo também nesse país meridional. E o que notamos é que os portugueses têm vindo a resistir estoica e inquestionavelmente à crise, económica e financeira, que lhes bateu à porta em Maio de 2011. Crise, sem dúvida devastadora. Pelo ajustamento e as suas consequências mais directas: o desemprego e o empobrecimento. No entanto e apesar disso, os portugueses têm vindo a reagir de forma tranquila e pacífica à mesma crise. Ou seja, têm vindo a reagir de acordo com a sua proverbial brandura de costumes. Sem protestos de grande monta, nem desordens ou violências nas ruas. As próprias greves estão localizadas no sector público e visam objectivos essencialmente políticos ou partidários, e não passam disso. São greves dos funcionários administrativos em geral, dos professores e dos trabalhadores dos transportes públicos. Em termos dos efeitos (sociais, económicos e políticos) da crise nada do que aconteceu ou acontece em Portugal tem paralelo com o ocorrido por exemplo na Grécia. Por isso, perguntamos: porque resistem os portugueses à crise?

   Já se aventou que os portugueses resistem à crise porque as famílias e as empresas se auto-ajustaram ainda antes de 2011. Segundo esta teoria, os portugueses prepararam-se de antemão para o que se anunciou a partir da crise americana dos subprimes de 2008. Desde então e em particular a seguir a Maio de 2011, os portugueses passaram, por sua própria iniciativa, e aos poucos, a gastar menos e a gastar com menos recurso ao crédito. Mudaram de hábitos. Reduziram o consumo. Apertaram o cinto. As famílias e as empresas trataram, elas mesmo, de corrigir atempadamente os erros e os excessos que as trouxeram à bancarrota de 2011. Passaram a viver de acordo com as suas possibilidades, ao contrário do que vinham fazendo até à chegada da troika. Numa palavra: os portugueses foram-se ajustando eles próprios às exigências da austeridade ditadas pela crise. Esta teoria, sendo embora correcta, só o é parcialmente. Há mais razões, também parciais e não determinantes, que explicam a resistência dos portugueses à crise. Repetimos: não determinantes, porque a causa decisiva de tal fenómeno reservamo-la para o fim desta epístola. Mas não deixa de ser verdade que o auto-ajustamento dos portugueses teve um papel importante na reistência destes à crise.                       

  - Tudo bem, mas para além do auto-ajustamento, porque resistem os portugueses à crise?

  - Emigraram mais de 200 mil portugueses, a maior parte jovens, nos últimos dois anos, e essa saída de potenciais trabalhadores para o estrangeiro foi um grande alívio na pressão dos desempregados em Portugal. Se permanecessem no país, esses vossos compatriotas aumentariam de forma considerável a percentagem dos desempregados, com as suas naturais consequências negativas. A percentagem dos inactivos, os oficiais e os informais, situar-se-ia muito acima dos 20% e estaria bem mais perto das campeãs do desemprego - a Grécia e a Espanha. Assim como assim, estais agora nuns suportáveis 15%.     

 - Certo, mas para além do auto-ajustamento e da emigração de 200 mil desempregados, porque resistem os portugueses à crise?

 - O bom comportamento do sector do turismo, desde o início da crise, teve também a sua quota-parte positiva na luta contra a crise. Permitiu que a manutenção dos postos de trabalho, nesse sector e actividades subsidiárias, se situasse em níveis normais ou quase normais.

 - Correcto, mas para além do auto-ajustamento, da emigração de 200 mil desempregados, e do bom comportamento do sector do turismo, poirque resistem os portugueses à crise?

 - O excelente comportamento do sector exportador que, além de ter dado um notável contributo para a manutenção e/ou criação de empregos, tornou a balança comercial largamente positiva, coisa que há muito tempo não acontecia.

 - É verdade, mas para além do auto-ajustamento, da emigração de 200 mil desempregados, do bom comportamento do sector do turismo, e do excelente comportamento do sector exportador, porque resistem os portugueses à crise?

 - As privatizações de meia dúzia de empresas do sector público, goste-se ou não, permitiram ao Estado um encaixe e um alívio financeiro de 8,1 mil milhões de euros, com os seus óbvios efeitos positivos.

 - Certamente, mas para além do auto-ajustamento, da emigração de 200 mil desempregados, do bom comportamento do sector do turismo, do excelente comportamento do sector exportador, e das privatizações de empresas públicas, porque resistem os portugueses à crise?

 - A benevolência da troika, que fechou muitas vezes os olhos, com a entrega dos cheques correspondentes, ao incumprimento de metas, tais como as várias TSU's , que não avançaram, a redução dos salários dos sectores público e privado, do salário mínimo nacional, e das pensões, que ficaram para as calendas, além da flexibilização da legislação laboral, que não saiu do papel.

 - Com certeza, mas para além do auto-ajustamento, da emigração de 200 mil desempregados, do bom comportamento do sector do turismo, do excelente comportamento do sector exportador, das privatizações de empresas públicas, e da benevolência da troika, porque resistem os portugueses à crise? 

 - A solidariedade social, goste-se ou não, amplamente praticada em Portugal, por instituições religiosas, nomeadamente as católicas, como a Caritas e as Misericórdias, mas também por outras entidades de cariz social, como a Cruz Vermelha portuguesa, o Banco Alimentar Contra a Fome e a AMI, tem tido um papel importante na luta dos portugueses contra a crise.

 - Pois claro, mas para além do auto-ajustamento, da emigração de 200 mil desempregados, do bom comportamento do sector do turismo, do excelente comportamento do sector exportador, das privatizações de empresas públicas, da benevolência da troika, e da solidariedade social, porque resistem os portugueses à crise?

 - A resistência, muitas vezes fictícia, por receio do escândalo social e político, por pressão dos sindicatos e até do governo, de muitas das grandes empresas, em especial as públicas, em situação de falência ou pré-falência, além do próprio Estado, bancos, câmaras e empresas municipais, à necessidade real de reduzir pessoal de forma significativa, optando em vez disso, por congelar ou reduzir convenientemente os salários, ou por recolocar efectivos onde eles não são necessários. Tudo para fugir, a todo o transe e à custa dos contribuintes portugueses, aos despedimentos em massa de trabalhadores e as suas nefastas consequências. Vejam-se, a título de meros exemplos, os seguintes casos:

 O Banco Português de Negócios (BPN), que, apesar dos vários milhares de milhões de euros que já sorveu ao erário público, nunca procedeu a um despedimento colectivo tal como se impunha;

 O Banco Comercial Português (BCP), que negociou recentemente a redução dos salários dos seus trabalhadores, para evitar o despedimento de 400 empregados;

 O Montepio, com um prejuízo de 250 milhões de euros, em 2013, em vez de extinguir balcões inúteis e despedir trabalhadores, preferiu, por um lado, carregar como sempre nas comissões e outras alcavalas, e, por outro, abrir uma estranha e duvidosa subscrição de títulos que, como era de antever, não teve qualquer sucesso;

 Os grandes bancos tiveram, de 2010 a 2013, prejuízos de 4,6 mil milhões de euros, e, no entanto, no que diz respeito a despedimentos, estes terão sido quando muito pontuais e por mútuo acordo, isto é, a conta-gotas, mas nunca despedimentos colectivos. Ah! Espera lá! Houve, sim, uma excepção - a Caixa Geral de Depósitos dispensou de uma vezada 300 trabalhadores, mas em...Espanha!

 A Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL) foi extinta, recentemente, e os seus 350 trabalhadores foram pura e simplesmente integrados na Câmara Municipal de Lisboa;

 A intocável RTP (e os seus milhentos canais) é o que se sabe: tem perto de 400 trabalhadores excedentários; há cerca de três anos foi prometido o seu despedimento, e até agora o que houve foram apenas pífias tentativas de rescisões amigáveis dos contratos de trabalho;

 O maior empregador português, o Estado, tem 100 mil trabalhadores a mais, número reconhecido pela troika, e pelo ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar, e número pelo qual passa em grande medida e mirificamente a redução do défice público português - aqui de novo o que tem havido são meras tentativas de rescisões por mútuo acordo dos contratos de trabalho e, mesmo assim, encaradas com enorme hostilidade pelos sindicatos e pelas oposições. 

 - Naturalmente, mas para além do auto-ajustamento, da emigração de 200 mil desempregados, do bom comportamento do sector do turismo, do excelente comportamento do sector exportador, das privatizações de empresas públicas, da benevolência da troika, da solidariedade social, e da resistência do Estado, e de grandes empresas e outras entidades aos despedimentos colectivos, porque resistem os portugueses à crise?   

 - O grande motivo por que os portugueses resistem à crise ficou para o fim e tem a ver com o facto de o programa de ajustamento, imposto pelos vossos credores, não ter sido cumprido até agora senão pela metade. Explicando melhor: em Maio de 2011, o défice público português era de 20 mil milhões de euros, e o que se exigia era a redução total desse défice, no período de duração de três anos do mesmo programa, e, até hoje, e pelas mais diversas razões, o que se cortou foram apenas 10 mil milhões de euros. O ajustamento, ao contrário do exigido pela troika, e constante do compromisso assumido prlo Estado português, foi parcialmente efectuado e em grande parte através de brutais aumentos de impostos, sendo certo que o volume das despesas públicas designadamente com o Estado social - salários dos numerosos funcionários públicos, reformas e pensões - se mantém praticamente intacto. Esses 10 mil milhões de euros que ainda sobram para abater fazem toda a diferença e é isso que explica sem sombra de qualquer dúvida a resistência dos portugueses à crise. Se assim não fosse, os portugueses ver-se-iam todos também gregos. Não há milagres, caramba! 

 

 

 

O BURRO DE BURIDAN

 

Jean Buridan, (1300/1358), padre e escolástico francês, ficou conhecido pelo seu famoso paradoxo, designado o Burro de Buridan. Com tal paradoxo, Buridan queria configurar a paralização, a inércia e a falta de vontade livre. Ele imaginou por isso um burro que, sedento e faminto, e colocado entre um balde de água e uma medida de aveia, não se decide nem pela água nem pela aveia, e acaba por morrer de sede e de fome. É o caso do governo de Passos Coelho, que tem de um lado, entre outros, a troika, os mercados, Maria Luís Albuquerque, Angela Merkel, Christine Lagarde, Wolfgang Schäuble, e Henrique Medina Carreira, exigindo implacavelmente medidas de austeridade, e, do lado contrário, entre outros, as Oposições, as Centrais Sindicais, o Tribunal Constitucional, Mário Soares, José Sócrates, Pacheco Pereira, Manuela Ferreira Leite e Bagão Félix, opondo-se encarniçadamente às mesmas medidas de austeridade. Passos Coelho encontra-se assim bloqueado por tais forças absolutamente antagónicas. Passos Coelho nem bebe a água do balde nem come a aveia da medida, e acabará, como o burro de Buridan, por morrer não de sede e de fome, mas de simples paralisia política. Passos Coelho é o burro de Buridan.             

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

  

publicado por flagrantedeleite às 13:03
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