Quinta-feira, 12 de Setembro de 2013

OS MANUSCRITOS DAS AMOREIRAS

     Estes cadernos foram encontrados acidentalmente num banco do Jardim das Amoreiras, em Lisboa.  Alguém os teria deixado, nesse local, de forma inadvertida, embora, e que se saiba, nunca tenham sido reclamados. Ao lado das folhas, podia-se ver também o seguinte: uma garrafa de cerveja e um copo de papel, ambos vazios; restos do que parecia ser uma refeição ligeira, misturada com três ou quatro beatas, dois maços de cigarros desfeitos e vários fósforos apagados. Investigações, levadas a cabo por detectives privados, - achou-se mais prudente afastar a polícia do caso - permitiriam descobrir, sem grandes certezas, que os papéis pertenceram a uma tal Clarice Monteiro Vargas, jornalista de profissão. O nome é provavelmente fictício, e a profissão suscita algumas dúvidas. Os investigadores não puderam estabelecer, com rigor, qualquer relação, de causa e efeito,  entre a putativa propietária dos cadernos e os mencionados detritos.

    Ainda acerca dos escritos, convirá esclarecer que se trata de diários, iniciados nos princípios da primeira década deste século, e concluídos em Janeiro do corrente ano. Ao todo, são doze anos de prosa. Publicamos a seguir um resumo dos manuscritos, com particular incidência nos seus últimos doze meses, e respeitando tanto quanto possível o espírito e a letra do texto original.

    A primeira página não está datada, mas temos boas razões para pensar que é anterior de algumas semanas ao final do diário propriamente dito. Teria sido escrita, por conseguinte, nos começos de Dezembro de 2012, o mais tardar. Nessa altura, Clarice Monteiro Vargas acabara de entrevistar a contragosto uma qualquer celebridade portuguesa, de renome internacional.

 

Os Editores 

 

 

 

 

 

Folha sem data

 

 

    O melhor seria escrever os acontecimentos dia-a-dia. Fazer um diário para os considerar com clareza. Não deixar escapar as diferenças de pormenor, os facto miúdos, mesmo quando parecem insignificantes, e sobretudo ordená-los. Por exemplo, a entrevista de ontem. A maçada que ela não representou para mim! Não faz o meu género a pessoa entrevistada. Nem cultural nem intelectualmente falando. Não me sinto à vontade, nem no meu melhor, a dialogar com um homem como o Henrique Brazão de Melo. Fui chamada à última hora para fazer a substituição de uma colega. Foi claramente um jeito que fiz ao Dr. Rafael Cortesão, um jornalista que muito preza a liberdade de expressão. Uma pessoa à qual não se recusa nada. Nada é uma forma de pôr as coisas. Devo-lhe muitos favores.  Ele é, em grande medida, o autor do que eu sou e também...(1). Aquele seu telefonema foi muito convincente. Temos que fazer algumas concessões ao comercial, ao popular, enfim, temos que responder à concorrência com as mesmas armas.  O suplemento não pode ser muito elitista. Tem de apelar também aos instintos mais básicos. Além disso, o futuro dos jornais em papel é uma grande incógnita. Ninguém sabe o que vai acontecer. A Internet assusta-nos a todos. É uma ameaça inelutável. Um perigo iminente. Uma revolução silenciosa. Aquelas coisas todas que a gente já sabe. Ou antes: que eu já sei. É evidente que as novas tecnologias têm inúmeras vantagens, mas não só. Têm também o seu lado negativo. Tudo tem um preço. E o Dr. Rafael Cortesão ainda lá foi acrescentando que eu continuaria a fazer, como é óbvio, as outras entrevistas de maior fôlego. Que os meus artigos culturais não estavam em causa. Era o que mais faltava se assim não fosse. Até porque ele não ignora as minhas idiossincrasias. Ele sabe que eu sou uma patriota. Patriota, no bom sentido, claro. Uma patriota de esquerda. Uma nacionalista. É um erro grave pensar que o nacionalismo é um monopólio da direita. Não é, não senhor! O nacionalismo também pode ser de esquerda. Foi o salazarismo, de má memória, que induziu os portugueses a essa falsa teoria de que o nacionalismo é uma ideologia de direita. O nacionalismo tanto pode ser de direita como de esquerda. Há bons exemplos de ambos os lados. E também maus exemplos. Minto: se calhar são todos maus exemplos  À esquerda e à direita eram e ainda são todos ditadores. Nem vale a pena nomeá-los. São conhecidos. É por isso que procuro entrevistar homens e mulheres dos dois lados, sem qualquer discriminação ideológica. É preciso que sejam bons portugueses. É preciso que sejam conhecidos dos portugueses ... (2). É preciso dar a conhecer essa plêiade dos nossos compatriotas aos outros portugueses. Essa é a razão por que não posso perder tempo com negociantes de arte, como é o caso de Henrique Brazão de Melo, por mais ricos e famosos que eles sejam. De resto, interessam-me os que criam arte e não os que a vendem. Por outro lado, as minhas entrevistas não são entrevistas quaisquer. Já não estou para o género de perguntas e respostas. Eu formulo questões. Levanto dúvidas. Contraponho argumentos. As minhas entrevistas são debates. São um mano-a-mano com os entrevistados. Aos quais faço sentir que estamos ao mesmo nível. Ou eu acima deles.

    Pois bem! Lá despachei a entrevista com o Brazão de Melo. Felizmente que ainda tive tempo para fazer algum trabalho de casa. Valeram-me, e de muito, as pesquisas efectuadas pela colega substituída. Ela exagerou um pouco nos preciosismos e nos pormenores, mas já sei o que a casa gasta. Eis o que ela escreveu acerca desse Henrique Brazão de Melo: Moreno, alto e espadaúdo; 35 anos de idade; divorciado e pai de duas gémeas, entregues aos cuidados da mãe, a quem paga uma choruda pensão de alimentos; licenciado em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa, mas nunca exerceu; preferiu seguir a profissão de negociante de arte, herdada do pai, e que lhe permite, além de ganhar rios de dinheiro, viajar por esse mundo fora e travar bons conhecimentos; ex-jogador de rugby e actual praticante de ténis; é proprietário de um andar de luxo em Lisboa, uma quinta no Alentejo e uma moradia no Algarve; faz-se transportar num BMW SUV, topo de gama, ou seja, um X8 M; consegue ingerir toda a espécie de bebidas alcoólicas, sem nunca se embriagar ou sentir má disposição; come de tudo com enorme prazer; conhece e joga todos os jogos de salão, incluindo a canasta, o gamão e o monopólio; circula com imenso à-vontade nos casinos, nas festas mundanas e nos lóbis de hotéis de cinco estrelas; cliente assíduo de restaurantes de luxo e com vista para o mar; domina todos os assuntos, acerca dos quais tem sempre prontas opiniões bem fundamentadas, em pelo menos três línguas estrangeiras; tem o sentido de humor bastante apurado; finalmente, possui o dom de encantar todas as mulheres e de fazer as amizades mais improváveis.   

 

   A descrição, confirmada pela realidade, era a de um personagem de ficção. Mais do que um negociante de arte, era um agente secreto, um James Bond. Enfim, já os conheço. O resto não passou de um bom almoço, em restaurante da minha escolha, com ampla vista sobre o rio. Ementa: cherne grelhado, com hortaliça cozida, e regado com vinho branco muito fresco. A seguir, leite-creme; e bica, para rematar.

 

   Ontem foi muito mais complicado. E tinha havido também uma série de coincidências, de equívocos, que não consigo explicar. Mas não vou perder tempo a confiar tudo isso ao papel. Enfim, é certo que tive medo ou qualquer sentimento desse género. Se ao menos soubesse que tive medo, já seria um grande passo em frente. O mais curioso é que não estou disposta de modo algum a considerar-me facilmente sugestionável. Vejo com evidência que não sou sugestionável: estas mudanças ocorrem todas nos outros. É disso, pelo menos, que eu queria ter a certeza.  

 

 

 

Onze horas e meia (3)

 

 

    Pode bem ser que tenha sido uma pequena crise de autoconfiança. Já não restam sinais dela. Os sentimentos esquisitos da semana passada parecem-me hoje bastante ridículos: não consigo revivê-los. Esta noite estou muito à vontade, muito comodamente instalada na sala de estar da minha casa, virada para o nordeste. De repente, acode-me à memória o encontro casual, com um ex-colega, ocorrido no meu regresso a casa. Trago ainda na mente a conversa que tivemos numa pastelaria, onde fomos beber um café. Entre outras coisas, falámos das negociações com a troika e das dificuldades que os nossos ministros têm vindo a enfrentar. Fiquei a saber, sem surpresa, que os nossos ministros estão a ser humilhados pelos homens da troika, durante as negociações. Estamos a falhar muitas das metas, com que nos comprometemos, e eles não aceitam isso. Os nossos ministros estão a ser esfolados vivos. Estão a ser enxovalhados. Tudo isto é inadmissível. Lembro-me daquele nosso escritor que disse numa entrevista recente à RTP: Gostava de saber quem foi o malandro que fez isto ao meu país. Também eu gostava de saber. O problema é que somos muitos os que fizemos isto ao nosso país. E nessa lista estão também os que criaram fundações para receberem subsídios e para fugirem ao fisco. Os que estão por detrás dos negócios ruinosos e fraudulentos do BPN e do BPP. Dos que nos impingiram as PPP. Foi um... (4) em que muita gente tomou parte. Deus me perdoe! Eu até nem costumo defender a teoria dos gastos acima das nossas possibilidades para justificar a crise. É uma teoria que não se coaduna com os meus princípios ideológicos, e é politicamente incorrecta. Mas não deixo de reconhecer que ela encerra muita verdade e está mais de acordo com o meu espírito mordaz e satírico. Que belas crónicas isso não daria na minha pena! Os esbanjadores foram apanhados de calças na mão. E agora anda tudo às aranhas. Sinto que estou no lado errado da equação. No lado errado da História. Mas que fazer? Só posso confiar as minhas dúvidas ao papel, ao meu diário.

      Vou-me deitar. Estou curada, renuncio a escrever as minhas impressões dia a dia, como as rapariguinhas num lindo caderno novo. Passo pela estante, e reparo que o romance A Náusea, de Jean-Paul Sartre, me fita intensamente e levo-o comigo para a cama. É uma obra a exigir releitura urgente, sobretudo depois de ter também relido Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar. Ocorre-me que já ninguém lê livros; anda toda a gente a relê-los.

     Num caso apenas poderia ser interessante fazer um diário; no caso de...(5)

 

 

 

 

Segunda-feira, 14 de Janeiro de 2013

 

          

 

      Aconteceu-me qualquer coisa; já não posso duvidar. Qualquer coisa que veio à maneira duma doença, não como uma vulgar certeza, não como uma evidência; que se instalou sorrateiramente, pouco a pouco. A dada altura senti-me um tanto esquisita, algo incomodada, mais nada. Tomado o seu lugar, essa coisa não me mexeu mais, ficou como estava, e pude assim convencer-me de que o mal começa a propagar.

      Não acho que a profissão de jornalista disponha para a análise psicológica. É um trabalho que só entra em jogo com os sentimentos inteiros e alheios, aos quais se dão nomes genéricos, como Ambição, Interesse. Se eu tivesse uma sombra de conhecimento de mim própria, era agora que devia utilizá-la. Por exemplo: em termos psicanalíticos, qual será o significado de não gostar de palavras como protagonismo, impoluto, conúbio, lupanar, regabofe, ou acólito? Ou então de não aceitar argumentos que contendam com a idade ou o sexo dos nossos adversários políticos? Ou que falem dos seus hábitos pessoais, das suas roupas, dos seus cabelos, ou dos seus penteados? Quais serão os meus actos falhados? Tenho que os procurar. Talvez nos meus sonhos.

    Tenho que ir para o jornal: o dever chama por mim. Pelo caminho penso na passividade dos portugueses face à crise, face às duríssimas medidas de austeridade. Nada que se compare com os gregos ou com os espanhóis. O 15 de Setembro deu-me alguma esperança. Mas, afinal, foi sol de pouca dura. Foi um oásis de num imenso deserto da indiferença. Da autocomiseração. Da autopunição. Da submissão.

 

 

 

Terça-feira, 15 de Janeiro

 

 

    Nada de novo.

    Trabalhei das dez à uma no jornal. Pus em ordem uma reportagem e fiz umas pesquisas. A reportagem é trabalho acabado: não voltarei a mexer-lhe antes da publicação.

    É uma e meia. Estou no café Galo de Oiro a comer uma sanduíche; tudo parece mais ou menos normal. De resto, nos cafés tudo é sempre normal, e especialmente no café Galo de Oiro, por causa do gerente, o senhor Albano, que traz sempre uma expressão acanalhada muito positiva e reconfortante. O senhor Albano passeia entre as mesas e aproxima-se, confidencialmente, dos clientes: Está tudo á vontade de vossa excelência

    Ah, se os portugueses se sentissem à vontade no seu próprio país! Ah, se os três partidos se entendessem e formassem governo! Afinal, foram eles que nos trouxeram ao beco onde estamos. Foram eles que negociaram e assinaram o memorando de entendimento. Ninguém melhor do que eles para explicar aos portugueses o porquê das medidas de austeridade e a sua aplicação. Se é que os portugueses o não sabem. E depois não temos oposição que mereça o nome de oposição. Do líder da oposição é o que se sabe. Nem bom vento nem bom casamento. Do Presidente da República nem vale a pena falar. Em resumo: temos um país ingovernado e ingovernável.  

    Cai a noite. Nas ruas as pessoas apressam-se em direcção aos transportes públicos, que as irão devolver às suas casas. A televisão espera por elas. O jornal informa-me que amanhã vai chover em Lisboa.

 

 

   

 

 

NOTAS

 

1. Uma palavra deixada em branco.

 

2. Uma palavra riscada (talvez indistintamente ou indiferentemente) está escrita outra por cima, mas ilegível.

 

3. Da noite, evidentemente. O parágrafo que se segue é muito posterior aos precedentes. Somos levados a pensar que foi escrito no dia       seguinte; mais cedo não, em todo o caso.

 

4. Mais uma palavra riscada, talvez forrobodó.

 

5. O texto da folha sem data termina aqui.

 

 

  

     

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

     

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

do negativo.   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

         

publicado por flagrantedeleite às 12:41
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