EU, O AMANUENSE B. (retalhos de uma vida) - é o título e o subtítulo do presente texto.
Sou um amanuense dos quatro costados e das sete partidas do mundo. É parte da minha vida, aventureira e aventurosa, que vou agora contar em quase quatro folhas A4. Faço-o simplesmente por desfastio e no meio de dois bocejos e um arroto. Quando falo de mim mesmo, não resisto aos bocejos, aos arrotos e a outros alívios corporais. É o que merecem todos os amanuenses, como eu. Aviso aos navegantes: o título destas memórias e reflexões inspira-se em dois romances - Eu, Cláudio (1934), do escritor inglês, Robert Graves, e O Amanuense B. (1937) do novelista brasileiro Cyro dos Anjos - e o subtítulo, num livro de contos - Retalhos da Vida de Um Médico (1949), do ficcionista português, Fernando Namora.
Retomando a minha história, começo pelo princípio: sou um pobre herói, nascido nos idos de trinta do século passado, pelo que posso considerar-me presentemente um homem avançado na idade, qualquer coisa como um pré-octogenário. Este pormenor não me impede de me julgar um jovem cheio de vigor e energia. Claudicantemente fiz os estudos primários e, muito mais tarde, secção aqui, secção ali, completei o antigo 5º. ano liceal. Consegui estas últimas habilitações, a trancos e barrancos, pois, ao mesmo tempo, dava o corpo ao manifesto no ganha-pão de cada dia. Comecei muito cedo a andar e a nadar na papelada. Não aprendi outra coisa que não fosse chafurdar na dita cuja. E foi com a citada bagagem literária e com algum traquejo nos papéis que, em tempos já remotos, e na flor da idade, parti para o continente negro, indo engrossar e reforçar a 2ª. linha do colonialismo português em África.
Segui o percurso que o Destino traçou a muitos dos meus conterrâneos, e que estes aceitaram, aliás, de bom grado, e com fama e proveito. Da fama nem vale a pena falar. Os proveitos eram imensos e tentadores: vencimentos sensivelmente melhorados; promoções rápidas, nas categorias; subsídios vários; contagem da antiguidade, para efeitos de aposentação, substancialmente bonificada. Tudo isto, sem contar uma relativa respeitabilidade. Mas não é tudo. Por fim, mas não por último, há que destacar a cereja no topo do bolo: seis meses de licença graciosa, gozada na antiga Metrópole, ao fim de 4 anos de serviço. Essas licenças eram invariavelmente prorrogadas por 2 e 3 anos de férias, que generosos e solícitos atestados médicos suportavam, e o regime convenientemente abençoava. Amanuenses houve que se bacharelaram à conta de licenças graciosas dilatadas. Diga-se que, na maior parte dos casos, tais bacharelatos mais não eram do que aprofundamentos teóricos da doutrina colonialista que os interessados, no seu afã de bem servir o amo colonial-fascista, punham depois em prática nas próprias possessões ultramarinas.
Foram estas prebendas e sinecuras que tentaram muitos potenciais colonos, quer os da primeira, quer os da segunda linha. A partir dos inícios da década de 1960, e perante atractivos tão aliciantes, milhares de Portugueses não resistiram e operou-se deste modo uma enorme corrida em direcção ao Eldorado africano. É exactamente aqui que entramos nós os amanuenses. Sabe-se que, muito antes de 1961, já demandávamos as costas africanas, onde protoganizámos, nem sempre discretamente, o segundo plano da presença lusa em África. A partir de Fevereiro de 1961, muitos conterrâneos meus, também eles enfeitiçados pelo canto e pelo encanto do maná colonialista, partiram, sem hesitações, para as Áfricas portuguesas. Note-se que partiram, ao arrepio de considerações de ordem ideológica, que muitos deles viriam mais tarde a abraçar e a apregoar, por conveniências simplesmente circunstanciais.
Instalado naquelas bandas, eu, como um bom amanuense, que sempre fui, aperfeiçoei aquilo para o qual os fados me haviam talhado: a burocracia. Ao mesmo tempo, fui gozando as delícias de uma paz e segurança que as autoridades e as forças coloniais me iam proporcionando. A paz e a segurança eram tais que eu e os meus colegas, da primeira e segunda linha, nem dávamos pela guerra que paredes-meias se travava. Com um sorriso nos lábios, chegávamos mesmo a comentar que se tratava de uma guerra inglória e inútil. Inglória e inútil para os insurgentes, bem entendido. É evidente que pensar assim era o que nos convinha e nos embalava. O problema é que isso não era verdade. O problema é que tal remanso foi súbita e inesperadamente abalado pela Revolução Portuguesa do 25 de Abril de 1974. O problema é que, com a dita Revolução, veio também a ameaça, real e concreta, da independência de todas as colónias lusas. O problema é que se instalou de imediato o pânico entre os colonos. O problema é que o Eldorado chegara ao fim. O problema é que a minha tranquilidade e o meu bem-estar estavam irremediavelmente condenados.
A história é conhecida: foi a corrida em dabandada para a antiga Metrópole, particularmente em 1975, de toda a comunidade colonial. Ala que se fazia tarde. Entre os que fugiram, ao lado dos restantes colonos, estavam também os amanuenses. Eu, o Amanuense B., não fui excepção. Era mais um entre muitos retornados. Daí em diante, o labéu de retornado havia de se tornar uma chaga incurável na minha pele. A maldita condição de retornado havia de me perseguir para o resto da minha vida.
Na antiga Metrópole, permaneci o tempo estritamente necessário para sacar a reforma. Depois disso, fiz agulha para a procedência. Ia tratar da segunda reforma. Costumo dizer que fui convidado para exercer novas funções, mas isso não é verdade. Com ou sem convite, eu estava condenado a regressar. Nada me atraia no resto do mundo nem eu tinha futuro fora do meu berço natal. O meu futuro só podia estar no lugar que eu deixara 15 anos antes. Era a minha segunda oportunidade. De resto, nesse lugar de retorno, ninguém me perguntou por que razão eu tinha abandonado uma colónia que acabara de se tornar independente. Ninguém viu nessa atitude da minha parte qualquer contradição. Ou, se alguns viram, nada disseram. Aparentemente, todos respeitaram e compreenderam esse meu passo. Aliás, novos voos esperavam por mim. Ia finalmente mostar e provar aos meus conterrâneos que eu não era apenas e tão-só um simples manga-de-alpaca. Ia mostrar e provar aos meus patrícios que podiam esperar muito de mim, como político, como jornalista e como homem de letras. E, bem assim, como um moralista, um homem incorrupto e incorruptível. Ia mostrar e provar-lhes, em suma, que eu, o Amanuense B. era um rabequista que também podia ser um pianista.
Além de um cargo, da maior importância, desempenhado na administração pública, fui escolhido para as mais diversas funções políticas. Dirigi uma folha semanal, onde cumpri cabalmente o meu lema de dar sempre o melhor de mim mesmo e da minha pena. Fui um perseguidor, incansável e impiedoso, dos traidores, dos sediciosos, dos corruptos e dos esbanjadores de dinheiros públicos. Mesmo que isso me custasse o posto de trabalho, como de facto custou, dar-lhes-ia combate sem tréguas. Eu tinha pela frente uma missão. Uma cruzada. Um desígnio. Um chamamento. E tudo isso aconteceu ao serviço dos meus concidadãos, aos quais jurei uma inquebrantável e sólida fidelidade.
Nesse meio-tempo, dei início a uma brilhante e bem-sucedida carreira literária, tendo já publicado 17 livros, da ficção ao ensaio mais variado. Acerca de tais livros, é opinião generalizada e consensual que se trata de análises profundas e penetrantes de um vasto leque de temas e questões. Da política à religião, passando pelos costumes, pela cultura, e pela crítica social e administrativa, nada escapa à lâmina afiada do meu bisturi nem à lente implacável da minha lupa. Provam-no ademais os títulos certeiros e sibilinos dos meus livros. Atente-se, como meros exemplos, nos seguintes achados verdadeiramente originais: No Meio da Neblina Amarela; As Contas do Meu Rosário; Estes Pedregulhos Que Deus Nos Deu; Um Calhau No Meu Sapato; Um Aventureiro Nas Terras De Kali Bambo; Perdidos e Agoniados; Os Engulhos Dos Invejosos; Os Acossados do Vento Sul; Recordações da Terra dos Finados; A Deusa Vai Descalça; Os Derrotados da Terra; e, enfim, A Tertúlia dos Atrofiados. Todos estes títulos são da minha lavra e saíram da minha fértil e imparável imaginação.
Ainda sobre os meus livros, convém referir que anual e pontualmente dou à estampa uma obra, com o patrocínio e financiamento de empresas amigas - públicas, principalmente - que é como quem diz: a expensas do erário público. Anual e pontualmente, apresento as minhas criações aos meus 69 amigos e conhecidos, residentes algures numa das nossas cidades, o que normalmente acontece logo a seguir ao Verão. Neste particular, a única excepção ocorreu num ano qualquer do Senhor, já não me lembro ao certo qual teria sido. Alguém influente, e das minhas relações de amizade, confidenciou-me que, nesse tal ano, a Láurea-Mor da Literatura iria contemplar um conterrâneo e que eu era o favorito. Convinha por isso e apenas para reforçar a minha posição, apresentar o meu livro anual, o mais cedo possível, de preferência, dois ou três meses antes da decisão do júri. Foi o que fiz. Nos princípios do tal ano, já me recordo exactamente qual teria sido, estava eu a apresentar a minha mais recente produção literária, com a pompa e circunstância do costume, e a contar que a distinção em causa me seria facilmente, e com toda a justiça, reconhecida. A boa notícia é que o prémio foi de facto atribuído a um patrício. A má notícia é que o prémio foi para outro que não eu. Perante uma tão clamorosa injustiça, é evidente que fiquei profundamente revoltado e consternado. Só não se sente quem não é filho de boa gente - lá diz o ditado e com razão. Mas já passou. Já estou recuperado. Já estou recomposto. Com mil e uma perguntas sem respostas, é certo, mas totalmente recuperado e recomposto. Melhores dias hão-de vir e ninguém me tira o estatuto de escritor internacionalmente conhecido e reconhecido. Os prémios passam e os escritores ficam, além de que os pássaros repousam no ocaso. Com escândalo e bênção ou sem eles. O que não quero é ser tambor de ninguém. Serei sempre o Amanuense B., o escritor que andou pelas terras do fim do mundo.
Entretanto, parti já para outra, ou seja, para o meu 18º. livro, que, no final do próximo Verão, apresentarei na tal costumeira cidade. Esperem por mim, meus 69 amigos e conhecidos! As trombetas da perseguição e corrupção não vencerão. Terrmino, parafraseando o Imperador Cláudio, o qual, como se sabe, era gago e coxo: Sou um homem que gagueja da perna e coxeia da língua.
RECTIFICAÇÕES ao texto anterrior, intitulado A SÍNDROME DE ZELIG:
1º. parágrafo, 1ª. e 2ª. linhas: (...) e foi estreado em 1983.
7º. parágrafo, 1ª. linha: Há pessoas que foram precursoras de Zelig.
3ª. linha do mesmo parágrafo 7º.: (...) pessoas que são herdeiras bem-sucedidas de Zelig.
Último parágrafo, 1ª. linha: De volta ao filme Zelig (...).
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