Quinta-feira, 19 de Julho de 2012

ATÉ À ETERNIDADE

    O Leopardo (Il Gattopardo, título original) é um filme de Luchino Visconti, e chegou ao público em 1963. A sua história situa-se no contexto da unificação e independência da Itália - Il Risorgimento. É um momento de viragem na História da Itália. O momento em que o velho e o novo mundo se confrontam e se defrontam. O príncipe Salina, a figura central da película, pertence por sangue e berço ao primeiro, mas distancia-se convenientemente dos dois. Com muita lucidez, com muita ironia, com muito cinismo. É dele estas palavras sábias, certeiras, sibilinas: Algo terá de mudar para que tudo possa continuar como dantes. E diz mais o príncipe Salina, falando com o seu padre assistente, após conhecer o advento da revolução: Sabe o que está a acontecer no nosso país, padre? Nada acontece. Apenas uma troca de posição das classes. A classe média não nos quer destruir, mas apenas tomar o nosso lugar, com calma, de forma educada. Talvez até metendo-nos nos bolsos uns milhares de ducados. Depois tudo pode permanecer na mesma. Como vê, padre, vivemos num país de compromissos.

    Quando o príncipe Salina menciona o nosso país ele quer referir-se naturalmente à Itália. Mas Visconti, que no fundo é quem fala, pretende ir mais longe. Está a pensar noutras revoluções e noutras situações, nomeadamente, na Europa. E muitos exemplos poderiam ser aqui citados. Ficaremos, no entanto, por Portugal: 900 anos de História recheada de compromissos entre classes sociais vencedoras e vencidas. De revoluções que ficaram pelo caminho. De privilégios recuperados. De fracassos políticos, sociais, económicos e culturais.

    Na Revolução de 1383/1385, a burguesia derrotou a classe nobre, impondo, e bem, um rei português no trono do país. Mas, volvidas poucas décadas, as duas classes já estavam de braço dado. Business as usual. E assim foi sucedendo: depois de 1640, depois de 1820, depois de 1910, e por aí fora. Estas conciliações de classes, estas promiscuidades de classes estão na origem da nossa crónica falta de classes dirigentes fortes. Com espírito de iniciativa, de criatividade, de comando. Dito de outra forma: sempre faltou a Portugal uma verdadeira elite, quer fosse da classe nobre quer fosse da burguesia.

    Entretanto, e a par das lutas políticas e de outras atribulações, havia um país suspirando pela riqueza que não tinha nem produzia, mas que achava que podia ir buscar onde sonhava que houvesse. À África, à Índia, ao Brasil, e, posteriormente, de novo, à África, onde cabou de vez a sua aventura colonial. Sempre que Portugal precisou de sair da pobreza, foi procurar riqueza lá fora ou esperou que ela viesse de fora. Primeiro, aconteceu com as especiarias da India, nos séculos XV e XVI; seguiu-se o ouro do Brasil, no século XVIII; vieram depois as remessas dos emigrantes, nos anos de 1960 e 1970; por fim, e já mais perto de nós, isto é, nos anos de 1985 a 2010, chegaram os fundos comunitários bem como o endividamento público e privado. Em nenhum desses momentos históricos, Portugal conseguiu vencer o maior dos seus obstáculos: a criação da sua própria riqueza, através do trabalho realizado dentro do país e com os recursos do país. Nem na agricultura, nem nas pescas, nem na indústria.

    A História de Portugal é uma longa caminhada do campo para a cidade. Da província para a metrópole. Do interior para o litoral. Foi em vão que os reis da primeira dinastia tentaram combater esse velho defeito português. E nos dias que correm ainda se sentem e se vêem as consequências desse nosso mal perene: vilas e aldeias desertas; herdades incultas e abandonadas. Nos anos da fartura dos euros, a partir de 1985, pagou-se aos agricultores para pura e simplesmente deixarem de lavrar as suas terras. O que estes fizeram cordata, proveitosa e assertivamente. Com as pescas aconteceu o mesmo: foram abatidas traineiras por um punhado de euros. Todas as revoluções industriais passaram ao lado de Portugal, e não foram poucas. Eis as razões por que desde sempre importámos tudo: dos bens alimentares à maquinaria.  Que foram sendo pagos com as já referidas riquezas que vinham de fora ou com dinheiro emprestado. E esses períodos de aparente abastança, em que se recebia para pagar dívidas antigas ou para pôr as contas em dia, foram simultaneamente períodos de euforia consumista, de trocas, de negócios, de importações de bens, de esbanjamento, de delapidação de fortunas, de exibicionismo barato, de exuberância bacoca. António Sérgio, no seu livro Breve Interpretação da História de Portugal ( Livraria Sá da Costa Editora, 1972 ) dá-nos um retrato exacto do que Portugal tem sido, em tal matéria. Atente-se na seguinte passagem da mesma obra, a pgs. 138/139:

   Às engrenagens administrativas de que o Estado dispunha já, juntou-se a legião nova dos beneficiados das obras públicas; muitos milhares de funcionários, mais ou menos opiparamente prebendados; muitas centenas de concessionários enriquecidos...  Portugal pareceu por largos anos (aos capitalistas estrangeiros) "um bom país a explorar, e as bolsas estrangeiras, passando a esponja do esquecimento sobre as bancarrotas passadas, abriram os seus cofres. Outras minas se tinham arranjado, outro Brasil surgiu". Era o mesmo processo de outros tempos: "uma sociedade vivendo de recursos estranhos ou anormais e não do fruto do seu trabalho e economia. Porque, enquanto o cenário do fomento dava a Portugal a aparência de um país rico, o facto é que a balança económica acusava um deficit sempre crescente e de alcance inverosímil quase. Como se sustentava, pois, o castelo português? De um modo simples: 1º., suprimindo a escassez do trabalho interno pelos subsídios oficiais, salariando a ociosidade e pagando-a com o produto dos empréstimos; 2º., saldando anualmente a conta económica da Nação com a exportação do gado humano. Outrora vinham quintos do Brasil para o tesouro, hoje vêm saques para particulares". (...) Desenvolveram-se no nosso país todos os vícios caracteristicos do burguesismo capitalista, sem as vantagens correspondentes de uma forte iniciativa produtora. A personagem representativa passou a ser o novo-rico, feito à custa de especulações e da exploração sistemática do povinho, e ordenado de um título de nobreza nova. 

    Como acontece quase sempre com a doença bipolar, aos períodos de euforia, que, no caso de Portugal, já vimos como foram, seguem-se as fases de depressão, de desespero, de descrença, de amargura. São as fases em que surgem os mitos do costume: o Encoberto, o Desejado, o Quinto Império, o Messias, Fátima, o Futebol, o Fado.

     Depois do que foram os loucos entusiasmos dos últimos 30 anos, em que Portugal se entregou aos maiores excessos consumistas, permitidos pelos dinheiros europeus e pelo endividamento, encontramo-nos agora perante o reverso essa realidade sorridente: o abatimento, a cova, a fossa, a falência. E que país temos hoje? Um país dirigido pela classe média, ou o que dela resta. Um país de padarias, mercearias e restaurantes ou o que deles resta. Um país de mitos, ilusões e fantasias ou o que deles resta. Um país com uma dívida privada no valor astronómico de 300 mil milhões de euros. Um país com uma dívida privada superior em muito à dívida pública. Um país sob resgate económico e financeiro de potências estrangeiras, que, para a nossa sobrevivência, nos emprestarm 78 mil milhões de euros. Um país arruinado. Um país sob fortes e inevitáveis medidas de austeridade. Um país riscado por auto-estradas vazias. Um país pontilhado por estádios de futebol sem jogos nem frequência. Um país dotado de um Estado Social que se prepara para apagar as luzes e fechar as portas. Um país que percorre as Nações emergentes, vendendo vinho, azeite, cortiça e chouriços. Um país que ainda hoje vende os mesmos produtos que já vendia há 150 anos atrás. Um país, cuja classe média definha agora a olhos vistos. A mesma classe média que há bem pouco vivia alegre e buliçosa, na sua ascensão política, económica e social. Este é o Portugal que temos hoje.

    Vamos concluir este texto como o começámos. Com Luchino Visconti, mas recuando 9 anos no tempo. Ou seja, a 1954, ano em que foi estreado Sentimento (Senso, no original), a quarta longa-metragem do mesmo realizador. A história, que a película nos conta, a um tempo, trágica, operática e melodramática, decorre em 1866, isto é, já na fase terminal da ocupação da Itália pelas forças austríacas, e pouco antes do Risorgimento - exactamente no mesmo período em que tem lugar o enredo de O Leopardo. O protagonista de Sentimento é o tenente Franz Mahler. O covarde, o desertor, o infame Franz Mahler.  O oficial do exército austríaco, por quem a condessa Livia Serpiere se enamora e comete adultério. Por amor do qual a condessa Livia Serpiere trai a sua própria pátria, o seu marido, os seus companheiros.

    Luchino Visconti é já um pessimista, um descrente, um desencantado: com os compromissos políticos e de classes sociais que se foram sucedendo na História da Itália e também da Europa. Com os amanhãs que afinal não cantaram nem cantam coisa nenhuma. Com os sóis que afinal não iluminaram nem iluminam mundo nenhum. Com os mitos que afinal tinham e têm pés de barro. É esse pessimismo, é essa descrença, é esse desencanto que o cineasta exprime, de forma dramática e desesperada, nas últimas palavras do tenente Franz Mahler, um homem com as horas contadas. Um homem sem ideal, nem esperança, nem redenção. Um homem condenado a desaparecer. Tal como de resto a condessa Livia Serpiere, a quem Franz Mahler se dirige. Tal como aliás o mundo a que ambos pertencem. Oiçamos, pois, Luchino Visconti, ou o seu alter ego, Franz Mahler, nesse réquiem final de Sentimento: 

    Escuta, tenta perceber quem sou eu, realmente, e não como imaginaste que eu era! A ideia que tens de mim é pura fantasia! Foste tu que a inventaste. E não tem nada a ver comigo! Quem sou eu? Como vivo? Com que recursos? Tenho duas formas de arranjar dinheiro: através de mulheres e fazendo batota ao jogo. Sou um especialista nas duas. Eis os meus talentos. Também tenho outras qualidades. Sou um desertor porque sou um velhaco! E não me desagrada ser um desertor e um cobarde! Que me importa que os meus compatriotas tenham ganhado uma batalha, num lugar chamado Costoza, quando sei que perderam a guerra. A Áustria daqui a uns anos estará acabada. É todo um mundo que desaparecerá! Um mundo ao qual tu e eu pertencemos. O novo mundo de que fala o teu primo não me interessa. Mais vale não nos metermos nessas histórias e ir à procura do prazer onde quer que ele se encontre. E tu és como eu. De outra forma, não terias pagado para te oferecer umas horas de amor. É tarde demais, está tudo acabado! Eu não sou o herói dos teus sonhos! E já não te amo. Eu só queria o teu dinheiro, mais nada. Já me ia esquecendo: também sou um delator. Fui eu que denunciei o teu primo. E tu sempre o soubeste, mas querias salvar a nossa história de amor! Vai! Vai, Condessa! Vai! Vai-te embora, rameira! Vai-te embora! Rua! Corre! E não pares!                           

          

publicado por flagrantedeleite às 12:32
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