Quinta-feira, 28 de Junho de 2012

POR QUEM OS SINOS DOBRAM

    Há quem não se conforme com a passividade dos Portugueses face à crise, face às medidas de austeridade, face ao seu empobrecimento. Há quem não se contente com a indiferença dos Portugueses, com o alheamento dos Portugueses, com a mudez dos Portugueses. Há quem berre, de veias alteradas no pescoço, contra o assobiar para o lado dos Portugueses, contra o virar de costas dos Portugueses, contra o fatalismo dos Portugueses. Há quem vocifere, de narinas dilatadas, contra Fátima, contra o futebol e contra o fado dos Portugueses. Há quem expluda, de chispa nos olhos, contra a doçura dos Portugueses, contra a candura dos Portugueses, contra a brandura dos Portugueses.

    Os que assim pensam, falam e reagem, são os mesmos que dão como exemplos a seguir os Gregos, os Espanhóis, os Indignados. Os mesmos que têm à frente de si os cocktails Molotov, as montras partidas, os automóveis em chama, os pneus fumegantes, as pedras da calçada, as barricadas das ruas. Os que têm atrás de si a obsessão do 14 de Julho, a fixação da Comuna de Paris, a compulsão do Maio de 68. Os que têm sobre si a sombra de Bakunine, o fantasma de Lenine, o terror de Estaline, a sina de Trotsky. Os que recordam com nostalgia o PREC, revivem com melancolia o Otelo, relembram com orgulho o Vasco. Os que querem trazer todo esse passado para o presente dos Portugueses, para o quotidiano dos Portugueses, para o viver habitualmente dos Portugueses, para a mesa dos Portugueses, para os televisores dos Portugueses. Os que querem sacudir os Portugueses, acordar os Portugueses, agitar os Portugueses, animar os Portugueses, reanimar os Portugueses, salvar os Portugueses. Os que apoiaram reivindicações irrealistas, aplaudiram reivindicações fabulosas, acharam as reivindicações insuficientes, e pediram mais reivindicações, mesmo quando já não havia nada a reivindicar. Os que clamam com urgência pela união política da Eurolândia, bradam com insistência pela união Eurofiscal, suspiram com premência pelos Eurobonds, exigem com veemência a fabricação de Euronotas.  Os que não aceitam o peso da culpabilização colectiva, rejeitam a tese do consumismo selvagem, abominam o argumento dos gastos acima das nossas possibilidades, enjeitam a lembrança de que o dinheiro não era nosso. Os que agora recuperam o slogan os ricos que paguem a crise, os que querem a mandar a factura de volta à procedência, aos Alemães, aos Finlandeses, aos Holandeses, aos bancos deles, aos seus Ministros, à Merkel, ao Shäuble, à Lagarde. Os que agoram buscam afanosamente os bodes expiatórios, que apontam indiscriminadamente o dedo indicador, que assacam acaloradamente as responsabilidades. Dos que ao pequeno-almoço acusam implacavelmente os mercados; ao almoço culpam imperdoavelmente as agências de rating; ao jantar crucificam impiedosamente os bancos germânicos. Os que querem a casa desarrumada, a casa em desordem, a casa de pernas para o ar, a casa de pantanas. 

     O grande problema é que esse não é o discurso nem o temperamento dos Portugueses. A grande chatice é que os Portugueses não estão para aí virados. A grande bronca é que os Portugueses não podem ser de brandos costumes às segundas, quartas e sextas, e agitadores de rua, às terças, quintas e sábados. O grande incómodo é que Mr. Hide e Dr. Jekyll  aparecem no romance de Robert Louis Stevenson, e pouco mais. O grande drama é que os Portugueses já viram esses filmes todos. A grande tragédia é que os Portugueses já deram para esses peditórios todos. A grande cena é que os Portugueses acordaram atónitos de uma noite de enorme bebedeira, e estão a curar essa mesma bebedeira. Estão a ressacar. A deglutir. A regurgitar. A dar de si. A tomar consciência. A beliscar na própria pele. A penitenciar. A penar. E, ao mesmo tempo, a chorar. A chorar baba e ranho. A chorar de olhos lacrimejantes. A chorar de olhos bem abertos. A chorar de lenço na mão. A chorar pelos cantos.

    E um povo que chora, não canta. Nem luta. Nem pia. Nem grita. Nem pastaneja. Nem esbraceja. Nem esperneia. Nem espingardeia. Nem se manifesta. Nem protesta. E um povo que chora, simplesmente chora e sofre. Sofre curvado e em reflexão. Em genuflexão. Em contrição. Em união. Em reunião. Em comunhão. Em congregação. Em colectivo. Em vigília. Em silêncio. No silêncio dos inocentes.

    Quando muito, à tardinha, esse mesmo povo senta-se ao pé da janela e recorda com tristeza e saudade aquelas belas férias passadas na Tailândia, no Brasil e em Cuba; aquelas belas segundas casas, no campo e na praia; aqueles belos 2 e 3 automóveis por família; aqueles belos restaurantes com vista para o mar; aqueles belos créditos bancários sempre disponíveis para tudo; aquelas belas promoções, e reestruturações de carreiras; aqueles belos prémios e subsídios. Em suma, aqueles belos e gloriosos 20 anos, os melhores anos da sua vida. Os seus Golden Twenty. Enfim, aqueles belos sonhos de uma noite de Verão; sonhos que, da noite para o dia, se transformaram em monstruosos pesadelos. Os pesadelos das devoluções, das contas, das execuções, dos cortes, dos impostos, dos incumprimentos, dos despedimentos, dos desempregados, dos resgates, das troikas, dos défices, das falências, das desgraças, das misérias. Ou seja, o reverso da medalha, a outra face da lua, o outro lado do paraíso. O pagamento dos pecados, da gula, da luxúria, dos excessos, das dívidas, do esbanjamento, da orgia, do buraco em que os Portugueses se meteram.

     Outros povos, e em outras épocas, pagaram, e de que maneira! os seus desmandos e desatinos. Pagaram, com língua de palmo, o aventureirismo, o desgoverno e a irresponsabilidade. Fizeram-no silentemente, obedientemente, diligentemente. No mínimo, é o que espera os Portugueses, e eles sabem-no. Por isso, não podem ir em cantigas! Nem em festas! Nem em tretas! Afinal de contas, a memória de um povo tem mais força do que a força de alguns ingénuos! 

 

Rectificações: no texto anterior, intitulado O COLAR: 1º. parágrafo: a) Guy de Maupassant; b) (...) o conto é de 1884 (...).

                        Diálogo final: (...) desde a última vez que te vi (...).                

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Quinta-feira, 21 de Junho de 2012

O COLAR

O título é de um conto de Guy De Maupassant, ( escritor francês, 1850/1893) e encontra-se publicado em Contos Escolhidos, do mesmo autor, Publicações Dom Quixote, 2011, com tradução de Pedro Tamen. É exactamente esse conto que a seguir se vai resumir, sem qualquer comentário, e dando a palavra, em itálico e a negrito, ao seu próprio criador, sempre que tal se justifique ou se mostre oportuno. Ah, convém acrescentar: o conto é 1883, e passa-se em Paris.

 

   Mathilde Loisel nasceu pobre, mas bela. Sonhava casar com príncipes e no entanto estava-lhe reservado, como marido, um modesto amanuense do Ministério da Instrução Pública. Ambicionava palácios e morava numa humilde parte de casa mobilada.

   Não possuía toilettes, nem jóias, nada. E só gostava dessas coisas: sentia-se feita para elas. Como desejaria agradar, ser invejada, ser sedutora e solicitada...

   Tinha uma amiga rica, uma colega de convento, que já não ia visitar por sofrer tanto ao regressar a casa. E chorava dias inteiros, de tristeza, de nostalgia, de desespero e de angústia. 

    Uma tarde, o marido chegou a casa e comunicou-lhe com ar radiante: recebi um convite para uma soirée oferecida pelo Ministro da Instrução Pública e sua esposa. A senhora Loisel mostrou-se triste e desalentada: não tenho vestido. O marido comprou-lhe com grandes sacrifícios um vestido de quatrocentos francos. Mas a Mathilde continuava insatisfeita: não tenho jóias. E o senhor Loisel sugeriu: fala com a tua amiga, a senhora Forestier, e pede-lhe que te empreste umas jóias. Tens tão boas relações com ela que podes pedir-lhe isso.

   A senhora Loisel gostou imenso da ideia, e foi a casa da amiga. Após experimentar vários adereços, diante do espelho, escolheu um soberbo colar de diamantes.

   Chegou o dia da festa. A senhora Loisel obteve um grande êxito. Era a mais bonita de todas, elegante, graciosa, sorridente e louca de alegria. Todos os homens a observavam, perguntavam o nome dela, tentavam ser-lhe apresentados. Todos os adidos do gabinete queriam dançar com ela. O Ministro reparou nela.

   Ela dançava numa embriaguês, com entusiasmo, inebriada de prazer, sem pensar em mais nada, no triunfo da sua beleza, na glória do seu êxito, numa espécie de nuvem de felicidade feita de todas as admirações, de todos aqueles desejos despertados, daquela vitória tão completa e tão doce ao coração das mulheres.

   Para a senhora Loisel a festa foi um triunfo completo, e regressou a casa na maior felicidade. Ao despir-se diante do espelho soltou um grito: tinha perdido o colar da senhora Forestier. Procuraram a jóia por toda a cidade, sem qualquer resultado. E a verdade é que o colar tinha de ser devolvido à sua proprietária. Ela e o marido percorreram todas as joalharias de Paris, até que encontraram um colar semelhante ao que desaparecera. Custava quarenta mil francos, mas, após alguma discussão, o joalheiro concordou em vendê-lo por trinta e seis mil francos.

   Loisel possuía dezoito mil francos e pediria o resto emprestado.

   E contraiu empréstimos, pedindo mil francos a um, quinhentos a outro, cinco luíses aqui, três  luíses acolá. Passou letras, assumiu compromissos ruinosos, foi obrigado a entender-se com os usurários, com todas as espécies de prestamistas. Empenhou-se até ao fim da vida, arriscou a sua assinatura sem saber sequer se poderia honrá-la, e, apavorado pelas angústias do futuro, pela negra miséria que ia abater-se sobre si, pela perspectiva de todas as privações físicas e de todas as torturas morais, foi buscar o colar novo, depondo em cima do balcão do comerciante trinta e seis mil francos. 

   E o colar foi por fim devolvido à senhora Forestier, que nem se deu ao trabalho de abrir o estojo.

  A senhora Loisel conheceu a vida horrível dos indigentes. Aliás, resignou-se definitivamente, heroicamente. Era preciso pagar aquela dívida assustadora. E ela havia de pagá-la. Despediram a criada; mudaram de casa; alugaram uma mansarda.

   Ficou a saber o que são os pesados trabalhos da lida casa, as odiosas tarefas da cozinha. Lavou a loiça, gastando as unhas cor-de-rosa nos barros gordurosos e no fundo das panelas. Ensaboou a roupa suja, as camisas e os panos de cozinha, que estendia a secar numa corda; todas as manhãs trazia o lixo para baixo, para a rua, e trepava a escada com a água parando em cada andar para recuperar o fôlego. E, vestida como uma mulher do povo, ia à frutaria, à mercearia, ao talho, de alcofa debaixo do braço, regateando, maltratada com insultos, defendendo tostão a tostão o seu miserável dinheiro.

   Todos os meses havia que pagar letras, que reformar outras, que ganhar tempo.

   O marido trabalhava ao fim da tarde a escriturar as contas de um comerciante, e à noite, muitas vezes, fazia cópia a cinco soldos por página.

   E durou esta vida dez anos.

   Dez anos passados, tinham pago tudo, tudo, incluindo a taxa de juro e os juros acumulados.

   Agora a senhora Loisel estava uma velha. Transformara-se na mulher forte, e dura, e rude, dos lares pobres. Mal penteada, com as saias de esguelha e as mãos avermelhadas, falava alto, lavava o soalho a baldes de água. Mas às vezes, quando o marido estava na repartição, sentava-se ao pé da janela e pensava naquela soirée de há tanto tempo, naquele baile onde estivera tão bela e fora tão desejada.  

   Um domingo, a senhora Loisel, agora profundamente marcada pelos anos e pelas agruras, andava a passear pelos Campos Elísios para descansar dos trabalhos da semana. Avistou de repente uma mulher que vinha em sentido contrário. Era a senhora Forestier, sempre jovem, sempre bela, sempre sedutora. Após alguma hesitação, a senhora Loisel cumprimentou-a: bom dia Jeane. A amiga fitou-a, mas não a reconheceu.

   - Ora...Minha senhora...Não sei...Deve estar enganada...

   - Não. Eu sou a Mathilde Loisel.

A amiga soltou um grito:

   - Oh! Minha pobre Mathilde, como tu mudaste!...

   - Pois mudei, vivi uns tempos bem duros, desde a última que te vi; e muitas misérias...E tudo por causa de ti.

   - De mim...Como assim?

   - Deves lembrar-te bem daquele colar de diamantes que me emprestaste para ir à festa do Ministério.

   - Sim, e então?

   - Pois foi, eu perdi-o.

   - Ora essa! Mas tu devolveste-mo...

   - O que eu te levei era outro muito parecido. E passámos dez anos a pagá-lo. E, como imaginas, não era fácil para nós, que não    tínhamos um tostão...enfim, acabou, e estou inteiramente satisfeita.

A senhora Forestier estacou.

   - Dizes tu que compraste um colar de diamantes para substituir o meu?

   - Pois foi. Não tinhas dado por isso, hem? Eram mesmo parecidos.

E sorria com uma alegria orgulhosa e ingénua.

A senhora Forestier, muito comovida, agarrou-lhe as duas mãos.

   - Oh, minha pobre Mathilde! Mas o meu era falso! Valia, quando muito, uns quinhentos francos!... 

   

              

 

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Quinta-feira, 14 de Junho de 2012

SEXO, MENTIRAS E VÍDEOS

   O consumismo é uma praga que nasceu no século XX, nos países capitalistas ocidentais, e se espraiou pelos tempos presentes. Nada escapa ao apetite devorador e alienatório do consumismo. O consumismo varre tudo o que lhe surge pela frente. Desde o simples sabonete ao romance mais volumoso, passando por artigos e crónicas (semanais e até diários) de jornais, por filmes, por programas de rádio e de televisão, tudo se submete ao império do consumismo. Tudo está nivelado pelo padrão do consumismo mais desenfreado e estonteante. No sexo, através do sexo,  no desporto, nas artes, na informação, na distribuição, na televisão, na moda, é o consumismo que manda.

   O sexo, real ou dissimulado, é vendido em anúncios de jornais, ao lado da necrologia. O sexo, explícito ou sugerido, é transaccionado 24 horas por dia em respeitáveis canais de televisão. O sexo, aberto ou escondido, forra estantes de vídeotecas familiares. O sexo, declarado ou disfarçado, confunde-se com a moda, dissolve-se na dieta, mistura-se com o sucesso, decora capas de revistas, preenche argumentos de cinema.

   O consumismo governa cada vez mais o desporto e o desporto-rei que vamos tendo. A engrenagem consumista do futebol está montada para funcionar com a precisão de um relógio electrónico. E nessa mesma engrenagem sobressaem três peças fundamentais: em primeiro lugar, a Organização; a seguir, os futebolistas e os técnicos; por fim, os espectadores ou os consumidores. São os últimos, os espectadores, que alimentam ou sustentam, literalmente, os dois primeiros, ou seja, a Organização, os futebolista e os técnicos, e tudo o que gravita à sua volta.

   Já não bastavam os saudáveis desafios de futebol, em tardes domingueiras. Aliás, tais desafios deixaram de existir. E os seus frequentadores também. Esses encontros aparecem agora no horário nobre das televisões, e nos dias úteis da semana. As bancadas foram substituídas pelos sofás. A luz solar deu lugar à luz eléctrica. As multidões dos estádios foram destronadas pelas solidões dos lares. Os gritos das claques presentes foram abafados pelos silêncios dos espectadores ausentes. Tudo a bem das transmissões televisivas, que impõem os seus próprios horários comerciais. A bem da publicidade consumista. A bem dos que, no remanso dos seus luxuosos gabinetes, empocham rios de dinheiro. Dos que não precisam de jogar no campo, porque ganham sempre na secretaria. Dos que andam de Mercedes, BMW's, Ferraris e outras marcas que tais. Dos que ditam as regras dos jogos. Dos que impõem as regras dos jogos. Dos que se eternizam nos cadeirões. Dos que nos servem as jogadas em combinação com os detergentes. Dos que preservam os penaltis em latas de conserva. Dos que douram os apitos e enchem as carteiras.

   Também não pode parar a máquina que suporta o negócio editorial. O negócio que nos traz e anuncia os best-sellers, as revelações, as originalidades, as traduções, os prémios, os autógrafos, as apresentações, as homenagens, as carreiras,  as heranças, os depoimentos, os registos, os estilos, os compromissos, as glórias, as prateleiras, os leitores, as adaptações, as filas, as feiras, as vaidades, os orgulhos, os conhecidos, as obras, as ficções, as reedições,  as distribuições, as habituais, as vozes, as esperas, os contratos, as cláusulas, as assinaturas, os riscos, as contas, as facturas, os impostos, as fundações, os restaurantes, os bares, os balcões, os mesmos, os parentes, os amigos, os colegas, os confrades, os correligionários, os plágios, os direitos...

   Voltando ao consumismo, ou insistindo nele, constata-se que um pouco atrás se falou no seu carácter alienatório e também se constata que o vocábulo alienatório caiu estranhamente em desuso. E no entanto o significado filosófico da palavra alienação, da qual deriva o termo alienatório, e tal como estabelecido pela Nova Enciclopédia LAROUSSECírculo de Leitores, 1994, mantém uma enorme e espantosa actualidade: Sentimento de afastamento e de estranheza em relação à sociedade e à cultura. Para o indivíduo alienado os valores e as normas sociais dos outros surgem sem sentido, o que lhe reforça o sentimento de isolamento e de frustração. A alienação implica também um sentido de impotência. O indivíduo sente-se incapaz de controlar o seu próprio destino e de exercer, através da sua acção, um efeito sobre os acontecimentos do mundo. 

   Dito de outro modo, e incidindo ainda sobre o consumismo, eis o que podem ser os seus frutos malignos, quando o mesmo fenómeno é erigido em dogma ou forma de viver soberana: o anestesiamento, a marginalização, e, por vezes, a própria aniquilição social, cultural e política da pessoa. Mas a alienação não aparece apenas associada ao consumismo. ( De resto, e de certa maneira, o consumismo é um epifenómeno, que, mesmo assim, urge denunciar e combater). A alienação pode derivar também da política tout court. Ela pode ser o resultado, por exemplo, de políticas económicas desviantes ou perversas; políticas económicas que desvirtuam ou subvertem o sentido último do conceito de Economia tal como entendido, entre outros, por Paul A. Samuelson e William D. Nordhaus: O estudo da forma como as sociedades utilizam os recursos escassos para produzir bens com valor e como as distribuem entre os seus diferentes membros. 

   À luz da citada noção de Economia, o que se verificou nos últimos decénios, nas economias neoliberais do Ocidente, em particular, nos países periféricos da zona Euro, não foi a produção de bens com valor, e com vista à sua distribuição entre os diferentes membros. O que aconteceu de facto foi o desvio dos investimentos financeiros quase exclusivamente para as actividades especulativas, na banca descontrolada, no crédito instantâneo, nos jogos da bolsa, no imobiliário, no comércio, e, sobretudo, na economia do consumo, actividades que podem dar mais dinheiro,  ou mais lucro, é certo, mas que reduzem a zero o crescimento e a riqueza produtiva ou reprodutiva; que põem de lado as indústrias, a pesca, a agricultura, etc. A prioridade foi dada ao sector financeiro ( mais imediato, mas de mais risco) em prejuízo da Economia ( mais certa, mas mais trabalhosa). Daí até ao consumo selvagem foi um pequeno passo. Daqui até ao consumismo foi um outro pequeno passo. Em suma, passou-se a viver em economias de consumo, economias que dependem essencialmente do dinheiro e da sua circulação intensiva. Enquanto houve dinheiro, tais economias de risco, as dos países periféricos da zona Euro, funcionaram na perfeição e na mais completa euforia. Quando o dinheiro se esgotou, essas mesmas economias ruíram como castelos de cartas e caíram na mais total depressão. É a situação em que se encontram presentemente a Irlanda, a Grécia, Portugal e a Espanha, todos intervencionados por entidades estrangeiras. Tudo indica que, dentro de instantes, a Itália seguirá o mesmo caminho.

   Durante muito tempo, a Irlanda foi apresentada como o Tigre Celta, e, afinal, não passava de uma vulgar gatinha doméstica. A Grécia, além de tudo o mais, martelou reiteradamente, as contas. Para o cômputo do resgate, económico e financeiro, de Portugal, no valor de 78 mil milhões de Euros, não foram tomados em devida consideração os défices da Madeira, das Autarquias e das Empresas Públicas. Estes défices são, portanto, perigosos icebergues, a flutuar nas costas portuguesas. A Espanha não está sob resgate de Países estrangeiros. No dizer do seu patético Presidente do Governo, foi aberta à Espanha uma linha de crédito no valor de 100 mil milhões de Euros. A Itália tem estado muito calada. A ver se consegue safar-se por entre os pingos da chuva.

   Vivemos tempos sombrios e aziagos. Tempos da mentira, da abjecção e da pornografia. Tempos em que, paradoxalmente, ainda há quem se escandalize com um ou dois vernáculos, proferidos em momento oportuno, e em puro jeito de desabafo. São os tempos que temos!      

     

               

publicado por flagrantedeleite às 12:22
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Quinta-feira, 7 de Junho de 2012

SODOMA E GOMORRA

   Fim-de-Semana Alucinante (Deliverance, no original), 1972, de John Boorman, filme americano, conta-nos a odisseia de 4 homens, da classe média urbana, que, só por desfastio e desenfado, descem em duas canoas um rio selvagem, em vias de desaparecer, e pelo meio de uma região inóspita. A aventura acaba em tragédia.

   A Grande Farra (no original: La Grande Bouffe), 1973, de Marco Ferreri, filme francês, é um relato de 4 homens, da classe média urbana, que, cansados do tédio e do quotidiano, se juntam num casarão isolado, mas no interior de uma qualquer cidade europeia, para uma prolongada orgia de comida e de sexo. A aventura salda-se pela morte trágica dos quatro devassos, um deles desfeito, literalmente, em merda. 

   As duas películas são de uma evidente actualidade, e, por coincidência ou não, ambas abordam praticamente as mesmas questões, através dos mesmos tipos de personagens. Falam-nos sobretudo do pessimismo e do mal de vivre da classe média ocidental e consumista. Algo que começou no século XX, mais precisamente no pós-guerra, e ainda perdura nos nossos dias, talvez até de forma agravada. Dir-se-ia que os dois filmes nos observam à lupa, pela mesma lente, e à distância de 40 anos. Estamos à espera dos próximos capítulos.

  Classes sociais? Classe alta? Classe média? Mas o que é isto? Não sei o que são classes sociais. Só sei que há individuos, que há profissões, que há famílias, que há maridos, esposas, filhas e filhos, mas de classes sociais, não tenho quaisquer notícias.

   As palavras são de Margareth Tatcher, a mesma que, na década de 80, do século passado, e com Ronald Reagan, mesmo a seu lado, achou que podia resolver todos os problemas do viver ocidental, enriquecendo os cidadãos; a mesma Margareth Tatcher que criou o capitalismo popular, a mesma que, sempre acompanhada de Ronald Reagan, ou o contrário, promoveu a desregulação bancária, incentivou a especulação bolsista e financeira, alimentou a economia de casino; a mesma que se inspirou nas teorias e nas doutrinas, neoliberais, do iluminado guru da Economia, Milton Friedman ( sim, esse mesmo, o que, com os brilhantes resultados que se conhecem, foi, a partir do golpe militar chileno, em 1973, apoiante polítco e conselheiro económico do General Pinochet, o cabecilha do dito golpe militar, o mesmo Milton Friedman que foi depois distinguido com o Prémio Nobel de Economia, em 1976) dos Chicago Boys ( sim, esses mesmos, os que se especializaram na receita económica do quanto mais pobre melhor, e fizeram do Chile e arredores, tubos de ensaio da ruína e da miséria), dos mesmos que, de um modo ou de outro, nos conduziram em linha recta à crise norte-americana do subprime, ou da bolha imobiliária, ( uma desvergonha do capitalismo ocidental) e, a seguir, às crises europeias das dívidas soberanas ( outras desvergonhas do capitalismo ocidental) em que nos encontramos presentemente; a mesma Margareth Tatcher e o mesmo Ronald Reagan, cujas políticas económicas e financeiras foram religiosamentes cumpridas pelos seus seguidores, adoradores e sucessores, nos Estados Unidos e na Europa, com promessas concretizadas de primeiras e segundas casas para todos; de 2 e 3 automóveis para todas as famílias; de férias baratas e tropicais para todos; do financiamento bancário fácil e rápido para tudo; do Modelo Social Europeu sem limites, que apoiou, subsidiou e amamentou tudo e mais alguma coisa; enfim, as conhecidas premissas do bacanal consumista em que o mundo ocidental se atolou, e cujas consequências sociais, económicas e políticas são uma procissão que ainda vai no adro; a mesma Margareth Tatcher, que não sabia o que eram as classes sociais, mas que, por uma enorme ironia da História, acabou por favorecer e fortalecer a classe alta, e enriquecer artificialmente a classe média, curiosamente, a sua classe de origem, que, pelos vistos e pelas aparências, ela nem conhecia, nem aceitava. Por fim, e como glorioso corolário das políticas económicas e finaceiras, inauguradas por Margareth Tatcher e Ronald Reagan, nasceu o já referido regabofe consumista, que, entre as inúmeras desgraças dele resultantes, e por outra enorme ironia da História, veio iniciar, já nos dias que correm, a destruição da classe média dos países pobres da zona Euro, e trazer-nos até aqui. Ou seja: mesmo à beira do abismo - sem qualquer medo do cliché, ou de outros fantasmas.

   Este texto abre com uma referência ao filme Deliverance. Não se resiste a terminar com um outro comentário à mesma película: quando os aventureiros de fim-de-semana, desfalcados de um companheiro, e maltratados no corpo e na alma, chegam ao fim do fatídico percurso fluvial, o primeiro aviso de civilização que encontram, e os deixa obviamente felizes, é a carcaça de um automóvel. Isto é: a felicidade perante o símbolo do consumismo ocidental, mesmo que reduzido a ferrugem. Ou convertido em trampa, que, para os efeitos, vem a dar tudo ao mesmo!       

   

publicado por flagrantedeleite às 12:24
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