O génio é isto, caramba. O sujeito tem um enorme sentimento de culpa. Ele é alguém roído pela culpa. Perseguido pela culpa. Obcecado pela culpa. Do passado e do presente. Vagabundos ao Luar. Os bodes expiatórios. O sal da terra. O sol da terra. A soleira da porta. O sal. O sol. O sul. The salt. The sun. The south. Requiescat in pace. Reformatio in pejus. 24 de Outubro de 1929. Quinta-feira Negra. A Grande Depressão. There's no way like the American way. New Deal. Há que saber sair do palco. Na hora exacta. Saber sair é tão importante como saber entrar. Ou mais! O plágio. O plagiário. Prima facie. Todo o Portugal contra o resto de Portugal. Bigger than life. Feios, Porcos e Maus.
ADIVINHA FORA DA CAIXA (3)
Quem é, quem é o Fernando Pessoa dos pobres?
Incertezas? Perguntem por ele na Rua Duque de Palmela, em Lisboa. Ao que parece, é frequentador assíduo de um estabelecimento situado nessa artéria da capital.
Beber os sólidos e mastigar os líquidos. Do átomo a Hiroxima. Pandemónio. Parafernália. Paranóia. Syilvia Kristel. O cozido está a trabalhar-me no estômago. Caiu-me mesmo mal. Lei Sálica. Casamentos morganáticos. Palafreneiro. Pim-pam-pum, cada bola mata um. M R Pum-Pum. Um qualquercoisiano. Fim-de-Semana Alucinante. Fim-de-Semana no Ascensor. É assim porque é assim. Não há café porque não há café. Petição de princípio. Meia-bola e força. Politicamente (in)correcto. Discriminação positiva. O Homem Tranquilo.
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com o seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com os seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah, Como me estonteia e me fascina...
E é na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena com a Morte!...
O génio é isto, caramba. Quem dá e volta a tirar, ao inferno vai parar. Ninguém pode dar o que não tem. SO4H2. Ex quibus. Da mão à boca se perde a sopa. Facécia. A cada um segundo as suas necessidades e de cada um segundo as suas possibilidades. As pessoas podem suportar que lhes morda um lobo, mas o que propriamente as exaspera é que lhes morda um cordeiro. Aduzir. Seduzir. Deduzir. Reduzir. Um casca-grossa. Perfume de Mulher. Nem contigo nem sem ti. Stabat Mater Dolorosa. No hard feelings. Sans rancune. Se deste e depois tiras,/ Pergunta Deus onde está,/ Dizes que nada sabes,/Ao inferno te mandará. O Americano Tranquilo.
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus; Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados; Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia; Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus; Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus; Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus; Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo o mal contra vós, por minha causa.
O génio é isto, caramba. 22 anos. De uma vida. Aqui entregues. Aqui deixados. Aqui desperdiçados. E agora dão-me um papel para o subsídio de desemprego. Já viu isto? Diz-me lá os teus pecados, menino. Senhor padre, eu. A Mulher Que Deus me Deu. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
TRÊS MULHERES COM DESTINOS PARECIDOS
No retorno fatídico de Angola, em 1975, o sujeito deixou a mulher e quatro filhos menores, em Lisboa, e foi para o Brasil. Com a promessa de que a família seguiria depois. Até hoje. Nunca mais se soube do safado. A mulher, sem outro recurso, lá teve de regressar à terra com os filhos atrás. Começou tudo de novo. Ferida no seu orgulho. Dilacerada. Humilhada. Vergada.
A segunda mulher, com dois filhos nos braços, volveu à casa materna porque o marido se tinha suicidado. Suicidado por razões políticas. Ela e a mãe odiavam-se mútua e mortalmente. Por isso, foi um regresso constrangido e envergonhado à estaca zero. Originando a sua inscrição no partido a que o marido pertencera. Então e hoje, um partido da extrema-esquerda com o qual, ideológica e culturalmente, ela nada tinha a ver. De resto, foi a sua estreia em filiação e militância política e partidária. Portanto, uma filiação vingativa. Uma filiação própria dos neoconvertidos. Uma filiação dos pintados de fresco. Uma filiação ortodoxa. Fanática. Fundamentalista. Primária. Própria dos ressabiados. Dos frustrados. Dos falhados.
Finalmente, uma outra mulher, que sustentava a mãe a meias com o irmão, vendeu tudo o que tinha, despediu-se de um bom emprego e, sem olhar para trás, viajou para Paris com o namorado. As despesas corriam todas por conta dela. Ao fim de seis meses, quando o dinheiro se acabou e nenhum deles conseguia arranjar trabalho, o namorado desapareceu. Para nunca mais. A nossa triste heroína não teve outro remédio senão vir bater à porta da casa que, em má hora e impensadamente, havia abandonado.
A Grande Farra. O Último Tango em Paris. o Ano da Morte de Ricardo Reis. Levantados do Chão. Mãe, há só uma.
HOMENAGEM
No filme, A Desaparecida, Ethan Edwards (John Wayne) e o companheiro, Martin Pawley (Jeffrey Hunter) são conduzidos ao chefe comanche Scar (Henry Brandon), por um mexicano garboso e hospitaleiro (Antonio Moreno), visando negociar o resgate de Debbie (Natalie Wood), a sobrinha sobrevivente do primeiro. Fracassada a missão, e num gesto de extrema elegância e honestidade, o mesmo mexicano devolveu acto contínuo a Ethan a recompensa, que este lhe havia pago. Esse homem apresentara-se inicialmente sob o nome de Emilio Gabriel Fernandez y Figueroa. Uma singela e tocante homenagem de John Ford a duas grandes figuras do Cinema mexicano: Emilio Fernandez e Gabriel Figueroa.
O génio é isto, caramba. Diz-me lá os teus pecados, menino. Senhor padre, eu. 22 anos. De uma vida. Aqui suados. Aqui enterrados. E agora dão-me um papel para o subsídio de desemprego. Já viu isto?
UM QUARTO SÓ PARA TI
Queres ser bom aluno e progredir, pela vida fora, em termos pessoais e profissionais? Então escolhe com cuidado os teus pais. Escolhe, de preferência, pais com algum dinheiro e instruídos. Pais proprietários de uma casa ampla, confortável, bem localizada e que disponha de pelo menos um quarto só para ti. Pais que já tenham em casa uma boa biblioteca e, bem assim, excelentes colecções de DVD's e CD's. Pais que já tenham em casa aparelhagem sonora e televisor LED-LCD, de 65 polegadas. Pais com hábitos de leitura. Pais que leiam jornais e revistas. Pais que, no ensino básico e secundário, dêem primazia ao privado em vez do público. Pais que discutam ideias. Pais capazes de responder às tuas perguntas e às tuas dúvidas. Pais que te apoiem nos trabalhos de casa. Pais que te ajudem na preparação dos testes. Pais que te paguem o explicador, se for caso disso. Pais que te comprem bicicleta e te ensinem a andar dela. Pais que te levem à praia e à piscina e que te ensinem a nadar. Pais que já tenham automóvel e te dêem as primeiras aulas de condução. Pais que te iniciem nos computadores e na Internet com conta, peso e medida. Pais que te levem ao teatro e ao cinema. Pais que te levem aos concertos de música, sobretudo aos concertos de música clássica. Pais que te levem ao bailado e à ópera. Pais que te levem aos museus. Pais que te levem às exposições. Pais que te levem ao estrangeiro. Cuidado com a escolha dos teus pais. Eles são os teus primeiros professores. Eles são a tua retaguarda.
O primeiro raio de luz que ilumina as trevas, convertendo num brilho ofuscante a que parecia votada a história remota da carreira pública do imortal Pickwick, deriva da consulta do seguinte assento do Livro da Actas do Clube Pickwick, cuja exposição aos olhos do leitor é do maior agrado do editor destes documentos, enquanto testemunho da cuidada atenção, da infatigável diligência e do criterioso discernimento com que conduziu a sua investigação por entre os variadíssimos papéis que lhe foram confiados. A Troika. O Triunvirato. O Trio. O Terceto. A Tríade. A Trilateral. A Tricontinental. O Triponto. O Ternário. O Tricórnio. O Triângulo. A Trindade. O Tridente. As Três Luzes do Altar. Três é a conta que Deus fez. Foram três de uma só vez. À terceira foi de vez. Não há duas sem três. Cristo resuscitou ao terceiro dia. Mãe, há só uma.
Lisbon revisited
(1923)
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfilerem
[conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada, quererem que seja da companhia!
Ó céu azul - o mesmo da minha infância -
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
O génio é isto, caramba. Eu nunca tinha entrado num tribunal. Já viu isto? Nunca ninguém se tinha queixado de mim. Nem eu, de ninguém. Ninguém é de ninguém, na vida tudo passa. Ninguém é de ninguém, até quem nos abraça. E agora metem-me um papel na mão, para o subsídio de desemprego. Já viu isto? 22 anos. Enterrados nas areias de uma empresa. 42 anos de idade. Divorciada. Um filho menor para sustentar. Já viu isto? Não, não vou por aí. Os vasos comunicantes. Os tubos de ensaio. Os mutantes. Veio de outro mundo. Tudo por tudo. Título sugestivo. Morte em Veneza. Contra tudo e contra todos. Morri Mil vezes. Fui preso 12 vezes pela PIDE. Eu, 6 vezes. Eu, nenhuma. Não sente pena? O meu reino por um cavalo. Realizei todos os meus sonhos. Sonhando-os. Tem aqui um sonho de encomenda. Um sonho à medida. Sonho por medida.
SONHOS
Shakespeare inventou os sonhos,
Tchaikovsky musicou-os,
Freud interpretou-os,
Kafka transfigurou-os,
Dali pintou-os,
Olivier encarnou-os,
Hitchcock filmou-os.
Sou testemunha ocular destes sonhos todos.
Sonhei-os.
O génio é isto, caramba. Se ele não existisse, tinha de ser inventado. 15 minutos antes de ele morrer, ainda estava vivo. La Palisse. Esta é a primeira vez que cá venho desde a última vez. Tínhamo-nos esquecido deles, mas eles não se esqueceram de nós. O Decepado. Ergueu a bandeira até ao fim. Nas areias do deserto. Heróis de Mucaba. Heróis de Nambuangongo. Chaimite. Rua Serpa Pinto. A prisão de Gungunhana. Rua Tenente Valadim. Morto pela Pátria no Niassa. Ao Dr. António Lorena. Médico. Homenagem de gratidão. Rua Júdice Biker. Rua da República. Rua Sá da Bandeira. Abolicionista. 5 de outubro de 1910. Estou a recibo verde. Há quem não esteja a nada. Nem a recibo verde. Nem a recibo branco. Nem a recibo amarelo. Há quem esteja em branco. Eu sou nutricionista. Estou a recibo verde. Nem a isso devia estar. Há profissões que, em tempos de vacas gordas, brotaram como cogumelos. Em tempos de vacas magras, essas mesmas profissões deixaram de fazer sentido. Deixaram de ter espaço. Em tempos de vacas magras, há que repensar tudo.
ADIVINHA FORA DA CAIXA (1)
Quem é, quem é o João Bénard da Costa dos pobres?
Uma dica: talvez o encontrem algures ao sexto dia da semana.
Há quem tenha dois empregos. Mal! Há quem tenha duas pensões. Uma de cá e outra de lá. Mal! Há quem tenha duas casas. Uma de lá e outra de cá. Mal! Há quem tenha dois automóveis. Mal! 22 anos de uma vida. Eu era uma jovem. Tinha sonhos. Enterrei-os nesta empresa. E agora, despacham-me com um papel para o subsídio de desemprego. Já viu isto? Divorciada e com um filho menor para criar. Enquanto há vida, há esperança. Enquanto há esperança, há vida. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. Há mais marés que marinheiros. E a vida continua. Se bem me lembro. E Deus não dorme. Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és. Cão que muito anda, ou osso ou pancada. Pelo andar da carruagem, se vê quem vai lá dentro.
Foi por ela que amanhã me vou embora
Sempre o mesmo, hoje e sempre ainda agora
Sempre o mesmo em frente ao mar também me cansa
Diz Madrid, Paris, Bruxelas quem me alcança
Em Lisboa fica o Tejo a ver navios
Dos Rossios de guitarras à janela
Foi por ela que eu já danço a valsa em pontas
Que eu passei das minhas contas foi por ela
O génio é isto, caramba. Já viu isto? O gajo ficou muito mal na fotografia. Bem feita! Ele que não se metesse em altas cavalarias.
A D. Verónica para a carvoeira:
- Estou muito desgostosa com o meu filho mais velho.
- Oh, D. Verónica, tenha paciência. Estes rapazes, quando se metem na vida "mundial," é uma grande chatice. Tem de ter muita paciência, D. Verónica.
Nec plus ultra. Ne varietur. 22 anos de uma vida. Vida cheia de ilusão. E de inocência. Perdi ambas. Aqui nesta empresa. E agora dão-me um papel para o subídio de desemprego. Já viu isto? Francisco Schettino. 52 anos. Uma vida dourada. São muitos os que pagam milhares para terem, por uns dias, a vida que Francisco Schettino era pago, e bem, para ter por toda a vida. Deus dá nozes a quem não tem dentes. Uma vida destruída em coisa de minutos. Nas águas do Mediterrâneo. Em coisa de minutos, Schettino deixou de ser o capitão do Costa Concordia para passar a ser o Captain Coward. O desgraçado, depois de ser dos primeiros a deixar o barco, abandonando os passageiros à sua sorte, chegou rapidamente a terra e só se lembrou de telefonar para a mãe e dizer: tutto bene, Mamma! Bom filho à casa torna. O filho pródigo. O bom samaritano. Foi a sua Estrada de Damasco.
A CELEBRIDADE HOLANDESA
Tirando um ou outro jogador de futebol, de que, aliás, pouca gente se recorda, a Holanda não produziu nenhuma celebridade durante o século XX, e no século XXI vai pelo mesmo caminho. A única grande excepção terá sido a actriz porno, Sylvia (Maria) Kristel (1952-2012), mais conhecida por Emmanuelle. Este último nome era, como se sabe, o da sua famosa personagem, de origem presumivelmente francesa, que ela interpretou em vários filmes. O nome e a personagem nada tinham de holandês. Bem feita!
O génio é isto, caramba. Diga trinta e três. Outra vez! Tussa. O seu mal é outro. Eufemismos. Doença prolongada. Neoplasia. Carcinoma. Perífrases. Metáforas. Jardim da Europa à beira-mar plantado. País do sol nascente. Comeu o fruto proibido. Comeu o pão que o diabo amassou. Passou as passas do Algarve. Por trancos e barrancos. Por Franças e Araganças. Por portas e travessas. Por estas e por outras. Por esta é que eu não esperava. Todos querem ser fotogénicos. Todos querem ser telegénicos. Todos querem ficar bem na fotografia. Literalmente. Metaforicamente. Na vida. Na política. Nos debates. Nos programas. Nas charlas. E tudo o mais.
STANLEY KUBRICK E AS CADEIRAS DE RODAS
Em Dr. Strangelove, o personagem epónimo, (Peter Sellers), loiro e de sotaque germânico, desloca-se numa cadeira de rodas e dela se ergue, inesperadamente, gritando de forma estridente: I can walk. Em Laranja Mecânica, Alex, (Malcolm MacDowell), e o seu bando, atiram o escritor progressista, Frank Alexander (Patrick Magee) para uma cadeira de rodas, e é sentado nela que este último observa e goza, friamente, a sua própria vingança. Em Barry Lindon, é amarrado a uma cadeira de rodas que o cornudo Sir Charles Lindon, (Frank Midlemass), se passeia empurrado pela criadagem. Finalmente, é plantado numa cadeira de rodas, e em imagens de TV clandestinas, que o ministro das Finanças alemão (cá está!) Wolfgang Schäuble, em conciliábulo com o seu homólogo português, promete um ajustamento da dívida do bom aluno. Vítor Gaspar escuta-o reconhecido, curvado e reverente.
O génio é isto, caramba. Já viu isto? 42 anos de idade. O que vai ser da minha vida? Sou velha para trabalhar e nova para me reformar. Divorciada e com um filho menor para criar. Já viu isto? As cheias correm para o mar. Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé. Se os ses fossem feijões, ninguém morria à fome. Todos por onze e onze por todos. Vais conhecer o lume da Russia. Tão certo como eu me chamar fulana de tal. Eles não sabem nem sonham. Aleksei Fiódorovitch Karamazov era o terceiro filho do proprietário rural do nosso distrito Fiódor Pavlovitch Karamazov, tão conhecido no seu tempo (e ainda hoje recordado) por causa da sua morte trágica e obscura, ocorrida exactamente há treze anos e sobre a qual falarei na devida altura. Todos querem ser fotogénicos. Mala de senhora. Mala de cartão. Muitos tiveram a sua mala de cartão. Um país de malas de cartão. The paper bag. Linda de Susa. Perdidos e achados. Perdidos e acabados. O crescimento económico. O grande problema das Economias ocidentais. O grande problema das Economias europeias. O grande problema de Portugal. Não vamos lá tão cedo. Muito menos em dois ou três anos. Ah, sim? E depois? So what? Farewell, my friend. A Rapariga do Rio Pó. Nos seus olhos é sempre meia-noite.
O MEU TIPO INESQUECÍVEL (2)
(...) Mas já não terão agradado tanto à classe média as desordens, a instabilidade política e social, e mesmo alguns excessos do anticlericalismo republicano, que foram acompanhando paralelamente as citadas reformas. Por tais motivos, uma facção significativa da classe média não gostou dessa parte da Revolução e alinhou com Sidónio Pais, quando este quis fazer um intervalo na Democracia republicana. A outra facção da classe média não esteve pelos ajustes e concordou, tácita ou explicitamente, com o assassinato deste major e matemático, pondo fim à sua aventura populista, autoritária e pré-fascista. (...)
O Homem Que Sabia Demais. A segunda versão é de longe melhor do que a primeira. Provavelmente. Alfred Hitchcock: digamos que a primeira versão foi realizada por um amador de talento e a segunda por um profissional. Ela levou os netos a conhecer Nova Iorque. Em plena crise. Quando regressou, tinha a factura à sua espera. Ficou pior do que uma barata tonta. A velhice é uma coisa triste. E o rídiculo, também. A sede de protagonismo, também. A consciência moral da Nação. A consciência intelectual da Nação. A consciência cultural da Nação. O BIG BROTHER. A BIG SISTER. Os sábios da Nação. Ela quer estar em todo o lado. Anita está em todas. Ela estava a definhar no outro canal. De repente saltou para a ribalta. Estamos vivos!
CENAS DO TERCEIRO MUNDO
(...) Não há quadro mais enternecedor do que a roupa dos pobres a secar nos casebres; ou cenário mais tocante do que o bibe, a baba e o ranho das crianças descalças; nem, por fim, retrato mais impressivo do que o desfile dos porcos, cabras e burros pelas ruas secas, poeirentas e malcheirosas. (...)
O MEU TIPO INESQUECÍVEL (1)
Dizem que a mãe era uma mulher muito religiosa. Uma santa. Deve estar no céu. Zelando pelo filho. Somebody up there likes him. Consta que o filho afirmou categoricamente a alguém o seguinte: Sou rancoroso! Sou vingativo! Sou impiedoso! Ai daqueles e daquelas que se atravessaram ou vierem a atravessar-se no meu caminho! Em boa verdade, mais de trinta já foram despachados. Mais de vinte, precocemente e/ou de causas ruins. Muitos mais se seguirão. Já estão na lista. Já estão na calha. Já têm as covas escolhidas. E as pedras tumulares, também. E os epitáfios, também. Contra tudo e contra todos. Sim, cá se fazem, cá se pagam. Deus não dorme. A mãe também não. Nada escapa. Nem escapará. Indivíduos. Partidos. Rádios. Jornais, em papel e online (e os seus sequazes). Revistas (e os seus acólitos). Chefes de Partido. Chefes de Governo. Governos. Povos. Países. Continentes. Mundo. Universo. Apocalypse Now.
O ZERO E O INFINITO
(A questão que se coloca não é morrer ou não morrer. Morrer, morremos todos. Já todos sabemos isso. Todos sabemos que tudo o que tem princípio, tem fim, embora, no que respeita ao Universo, haja dúvidas muito sérias, quer quanto ao seu princípio, quer quanto ao seu fim. A teoria do Big Bang não passa disso mesmo: de uma teoria. E mesmo que comprovadamente o Universo tivesse tido um princípio e vier a ter um fim, poder-se-ia sempre perguntar: e, antes do princípio, o que é que houve? E, depois do fim, o que é que haverá? Nos dois casos, nada? O "nada" é um conceito inimaginável em termos do Universo. Assim como cá "em baixo" na Terra se diz, e bem, que a Natureza tem horror ao vazio, também se pode afirmar com propriedade que o Universo tem horror ao vazio. Houve, há e haverá sempre qualquer coisa no espaço ao qual chamamos Universo ou onde se situa o actual Universo. Portanto e para concluir - essa "qualquer coisa", seja ela o que for, com princípio e fim ou com princípio e sem fim ou ainda sem princípio e sem fim, pode tornar relativas a verdade e a validade da proposição segundo a qual "tudo o que tem princípio, tem fim".
Mas voltemos ao problema da morte. A questão que se coloca não é a da dor da morte para os que partem. É a dor da morte para os que ficam, para os ente-queridos sobreviventes. É a dor da morte aos vinte ou trinta anos e não aos oitenta ou noventa anos. É a dor dos que morrem cedo e não a dos que morrem velhos. É a dor da morte sofrida e não a da morte súbita ou a da morte a dormir. É a dor da doença grave e incurável. É a dor da doença prolongada. É a dor de uma doença súbita, ou de um acidente, que nos atiram para uma cadeira de rodas ou nos põem uma bengala na mão. É a dor das mortes em grupos causadas por acidentes naturais ou por outras razões. Sim, cá se fazem, cá se pagam).
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".
Há Lodo no Cais, uma película de 1954, é da autoria do realizador norte-americano, Elia Kazan. O filme relata-nos o drama dos estivadores nova-iorquinos, subjugados por um sindicato mafioso e corrupto. Um sindicato que pratica impunemente a extorsão e o suborno. Um sindicato que procura atingir os seus fins criminosos pela intimidação, pelo espancamento, pelo assassinato. Um sindicato que persegue implacavelmente os dissidentes e os que fazem ondas. Um sindicato que liquida, sem dó nem piedade, os insubmissos e os suspeitos de deslealdade. Enfim, um sindicato que escolhe os estivadores, que devem trabalhar e os que não devem trabalhar, seguindo critérios de maior ou menor obediência à organização.
Deste sindicato, diz Johnny Friendly (Lee J. Cobb), o seu chefe todo-poderoso: Somos um sindicato cumpridor da lei. Do mesmo sindicato, diz um dos estivadores, em pleno cais e no meio de vários colegas, acabados de ser preteridos pelo contratador: O cais é duro. É como se não fizesse parte da América. Sabe como funciona o sindicato? É deste modo: levantas-te na reunião, fazes uma moção, as luzes apagam-se e depois sais. Tem sido assim desde que o Johnny e os seus amigos tomaram conta disto. É contra tudo isto que se levantam o padre Barry (Karl Malden),e, depois, Terry Malloy (Marlon Brando), um ex-pugilista falhado, e que, agora, não passa de um paquete às ordens de Friendly.
No fundo do porão de um navio, e perante o corpo de um estivador, assassinado pouco tempo antes, proclama o sacerdote católico, para os trabalhadores presentes: Alguns acham que a Crucificação só aconteceu no Calvário. É melhor abrirem os olhos. Tirar a vida ao Joey Doyle para o impedir de falar é uma Crucificação. Deixar cair uma carga sobre Kayo Dugan, porque ele ia contar tudo manhã, é uma Crucificação. Sempre que eles pressionam um homem bom, que tentam impedi-lo de cumprir o seu dever como cidadão, é uma Crucificação. E quem deixa isto acontecer, não fala sobre algo que aconteceu, partilha a culpa disso, tal como o soldado romano que cortou a carne do Nosso Senhor para ver se Ele estava morto. Rapazes, esta é a minha igreja. Se acham que Cristo não está aqui no cais, estão muito enganados! Todas as manhãs, quando o contratador apita, Jesus está ao vosso lado. Ele vê porque é que alguns são escolhidos e outros não. Ele vê os chefes de família preocupados em pagar a renda e em conseguir a comida para a mulher e filhos. Ele vê-os a vender a alma à Máfia por um dia de pagamento.
Mais adiante, tornaremos a falar de Há Lodo no Cais, e do arrependido Terry Malloy. Relembremos, por ora, o que disse uma crítica de cinema, norte-americana, a propósito desta obra: Passados cinquenta nos, Há Lodo no Cais faz-nos contemplar a traição com a mesma intensidade. Dizemos nós agora: Passados setenta anos, Há Lodo no Cais faz-nos contemplar a revolta com a mesma intensidade. Vale a pena voltar ao filme.
É bem possível que os países do centro e do norte da Europa já não queiram deixar cair a Eurozona. É bem possível que esses mesmos países já não queiram admitir a possibilidade da queda do euro, como moeda única. É bem possível que esses mesmos países já não queiram a saída da Grécia da Eurozona. Nem de Portugal. Nem da Espanha. Nem da Irlanda. Nem da Itália.
A integridade da União Europeia, em especial da Zona Euro, pode ser um imperativo mundial. A integridade da Zona Euro pode ser uma condição para a retoma das economias ocidentais. A integridade da Zona Euro pode ser uma exigência dos Estados Unidos e da China. Talvez estes queiram mesmo o reforço do espaço europeu. Talvez queiram mesmo a recuperação do projecto europeu. Talvez queiram mesmo a vertente federalista da União Europeia, ou qualquer coisa de muito próximo. Talvez queiram mesmo o orçamento único, alguma mutualização das dívidas, as transferências comunitárias, a supervisão bancária.
Mas, atenção! O que com toda a certeza eles não querem são os países gastadores. Mas, cuidado! O que com toda a certeza eles rejeitam são os países perdulários. Mas, cautela! O que com toda a certeza eles esconjuram são os países do regabofe consumista. Mas, alto lá! O que com toda a certeza eles abominam é o regresso ao passado recente dos esbanjadores.
E isto são exigências de todos, mas particularmente dos contribuintes alemães, holandeses, austríacos e finlandeses. E isto são exigências dos que não querem continuar a pagar as facturas dos que, durante trinta anos, dormiram à sombra da azinheira. E isto são exigências dos que sentem directamente na carteira os desvarios dos países do sul da Europa.
Por isso tudo, desenganem-se os que pensam que a austeridade vai já acabar. Por isso tudo, desiludam-se os que ainda sonham com o regresso ao período anterior a 2011. Por isso tudo, tirem daí o sentido os que ainda julgam possível manter ou recuperar os salários principescos. As reformas milionárias. Os subsídios mirabolantes. Os subsídios de residência. Os subsídios de refeição. As cantinas públicas. Os direitos adquiridos. As promoções automáticas. As horas extraordinárias inventadas. As isenções do horário de trabalho fictícias. As profissões fechadas. Os subsistemas de luxo. As piscinas disfarçadas. Os 2 e 3 automóveis por família. As férias exóticas. As 2 e 3 casas por família. Os restaurantes de luxo. Os restaurantes com vista para o mar. Os créditos bancários fáceis, rápidos e baratos. Os professores à rédea solta. Os restaurantes de vão de escada. As aventuras imobiliárias. Os cafés da esquina. As auto-estradas vazias. Os estádios de futebol desertos. As rotundas inúteis. As Fundações parasitárias. As rendas excessivas. As rendas de casa baratas. As reivindicações irrealistas. Os avanços civilizacionais de fachada. As obras faraónicas. Os elefantes brancos. Os Estados Sociais incomportáveis. As mordomias à descarada. Os privilégios de casta. As regalias perpétuas.
Estes exemplos e práticas pertencem ao passado. Estes exemplos e práticas devem pertencer ao passado. Estes exemplos e práticas fazem parte de um sonho que findou. Estes exemplos e práticas fazem parte de um sonho que tinha de chegar ao fim. Fazem parte de um estilo de vida sem ética nem sustentação. Fazem parte de uma perigosa utopia. Fazem parte de um desatino irresponsável.
A partir de agora, tudo vai ser diferente. A partir de agora, é tudo um rio sem regresso. A partir de agora, é tudo uma via de sentido único. A partir de agora, é tudo uma viagem só de ida. A partir de agora, o que se perfila no horizonte é um novo mundo. Uma nova vida. Uma nova era. A partir de agora, o que os países do centro e do norte da Europa querem e exigem são Estados que se bastem a si mesmos. Estados que não devam gastar mais do que produzem. Estados que, se arrecadam 70 mil milhões de euros de receita fiscal, não possam gastar 78 mil milhões euros. Estados que inscrevam nas suas Constituições os limites do défice orçamental e do endividamento público. Estados que não prometam eleitoralmente o que depois não possam nem devam dar. Em suma: o que os países do centro e do norte da Europa querem e exigem são Estados sem qualquer propensão para o aventureirismo. Ou para o populismo. Ou para o oportunismo. Ou para o arrivismo.
E os países do centro e do norte da Europa têm todo o direito de nos fazerem tais exigências. Têm todo o direito de nos porem na ordem. Têm todo o direito de nos arrumarem a casa. Têm todo o direito de mexerem nas nossas leis, produzidas em tempos de vacas supostamente gordas. Têm todo o direito de nos iluminarem os caminhos. Têm todo o direito de nos fazerem arrepiar caminho. Têm todo o direito de nos obrigarem a cortar o que nunca devíamos ter dado. Têm todo o direito de nos obrigarem a cortar o que não podíamos nem tínhamos dinheiro para possuir. Eles têm sobre nós estes direitos todos.
É que, além de tudo o mais, são eles que nos estão a sustentar. Foram eles que nos deram a mão, quando tudo estava perdido. Foram eles que nos pararam mesmo à beira do abismo. Foram eles que nos emprestaram o dinheiro com que estamos a viver. Foram eles que nos emprestaram 78 mil milhões de euros. Foram eles que nos vieram salvar da bancarrota iminente. São eles que provavelmente vão ter que nos emprestar, a breve trecho, mais 30 mil milhões de euros.
E, sem eles, teríamos um destino incerto e sombrio. E, sem eles, ninguém mais nos acudiria. E, sem eles, talvez só regressando ao escudo e a um recuo, económico e social, de mais de 40 anos. E, sem eles, é que seria de facto o verdadeiro recuo civilizacional. E, sem eles, é que seria com efeito o recuo civilizacional que a todos nos aterroriza. E não o recuo civilizacional apregoado por aqueles que nos arrastaram até onde chegámos. Aqueles que agora combatem com armas ideológicas o que não passa de simples operações aritméticas. Aqueles que continuam a servir-se das mesmas armas ideológicas com que nos conduziram ao precipício. Aqueles que levam as mesmas armas ideológicas para as convenções. Aqueles que carregam as mesmas armas ideológicas com que assinam os manifestos. Aqueles que são muito lestos a criticarem a Grécia e a demarcarem-se da Grécia, e se fazem de cegos no que diz respeito ao passado recente do nosso quintal e à actualidade do nosso quintal. Aqueles que nos querem proibir de falar nos desmandos recentes do nosso quintal. Aqueles que querem passar uma esponja sobre as loucuras recentes do nosso quintal como se nada fosse.
A partir de agora, vamos estar entregues a nós mesmos. A partir de agora já não temos onde ir buscar o dinheiro. A partir de agora, só nos resta o caminho de gastarmos de acordo com o nosso crescimento económico e segundo as nossas possibilidades.
Mas voltemos ao filme Há Lodo no Cais, tal como atrás ficou prometido.
Depois de ter participado involuntariamente no homicídio de um estivador descontente, Joey Doyle; depois de se enamorar de Edie (Eva Marie Saint), irmã de Joey; depois de assistir ao assassinato de outro estivador descontente, Kayo Dugan; depois de ter contemplado o cadáver do seu próprio irmão, Charley Malloy (Rod Steiger), a baloiçar num gancho; depois de instigado pelos exemplos e pelas palavras do padre Barry; depois de ter quebrado a lei do silêncio, de ter deposto corajosamente perante uma comissão do Congresso e de finalmente ter testemunhado contra Johnny Friendly e o seu bando de mafiosos; depois de este último gesto lhe ter valido a ostracização imediata da comunidade portuária, Terry Malloy reencontra-se consigo próprio. Terry Malloy reergue-se do chão. Terry Malloy recupera a honra e a dignidade perdidas. E, perante o cais e todos os seus companheiros, Terry Malloy aponta o dedo implacável ao chefe do sindicato e desafia-o: Friendly, vem cá fora! Sem as armas, tu não és nada, sabias? Tirando os bens, os subornos, o dinheiro das extorsões e os pistoleiros, não és nada! A tua coragem está toda na carteira e no dedo no gatilho! Talvez te tenha traído, do vosso ponto de vista. Mas agora estou deste lado! Estava a trair-me a mim próprio ao longo dos anos e nem sequer sabia. Tu mataste o Joey, mataste o Dugan e mataste o Charley que era um dos teus. Pensas que és um Deus Todo Poderoso, mas sabes o que és? És um maldito, sujo e podre vigarista e estou contente por te ter tramado. Estou contente pelo que fiz e vou continuar a fazê-lo.
EXPLICAÇÃO DE O ÚLTIMO TANGO EM PARIS (MEIO SÉCULO DEPOIS)
(...) E aqui estou eu repatriado. Penso em uma criança que viveu num bairro pobre. Aquele bairro, aquela casa! Só tinha um andar e as escadas não eram iluminadas. Agora, ainda, depois de longos anos, a criança poderia lá voltar em plena noite. Ela sabe que treparia as escadas a toda a velocidade, sem vacilar uma única vez. O seu próprio corpo está impregnado daquela casa. As suas pernas conservam a medida exacta da altura dos degraus. A sua mão, o horror instintivo, jamais vencido, do corrimão da escada. Era por causa das baratas.
Nas noites de Verão os operários punham-se à janela. Na sua casa não havia senão uma janela muito pequena. Traziam-se então cadeiras para defronte da casa e gozava-se a noite. Havia a rua, os vendedores de gelados ao lado, os cafés em frente, e o ruído das crianças correndo de porta em porta. Mas sobretudo, por entre as grandes figueiras, havia o céu. Há uma solidão na pobreza, mas uma solidão que dá a cada coisa o seu valor. Com um certo grau de riqueza, o próprio céu e a noite cheia de estrelas parecem bens naturais. Mas no fundo da escada o céu retoma todo o seu sentido: uma graça sem preço. Noites de Verão, mistérios em que crepitavam as estrelas! Havia por detrás da criança um fétido corredor e a sua cadeirinha, arrebentada, afundava-se um pouco debaixo de si.
A mãe da criança também ficava silenciosa. Em certas circunstâncias, perguntavam-lhe: "Em que pensas?" "Em nada" respondia ela. E era bem verdade. Tudo estava ali, portanto nada. A sua vida, os seus interesses, os seus filhos limitavam-se a estar ali, com uma presença demasiado natural para ser sentida. Ela estava enferma, tinha dificuldade em pensar. Tinha uma mãe rude e dominadora que tudo sacrificava a um amor-próprio de animal susceptível e que tinha por muito tempo dominado o espírito fraco da filha. Emancipada pelo casamento, tinha regressado docilmente depois da morte do marido. Ele tinha morrido no campo de honra, como se diz. Em lugar de honra, podem ver-se, numa moldura dourada, a cruz de guerra e a medalha militar. O hospital mandou à viúva um pequeno estilhaço de obus encontrado no corpo. A viúva guardou-o. Há muito tempo que já não sente o desgosto. Esqueceu o marido mas fala ainda do pai dos seus filhos. Para criar estes últimos, trabalha e dá o seu dinheiro à mãe. Esta procede à educação das crianças com uma chibata. Quando bate com muita força, a filha diz-lhe: "Não lhe batas na cabeça". Porque são os seus filhos e ela ama-os muito. Ama-os com um amor uniforme que nunca se lhes revelou. Algumas vezes, como nessas noites de que ele se lembrava, de volta do trabalho extenuante (é mulher-a- dias), ela encontra a casa vazia. A velha foi às compras, as crianças estão ainda na escola. Abate-se então numa cadeira e, com os olhos vagos, perde-se na louca perseguição de uma greta do sobrado. (...)
(In Entre o Sim e o Não, conto incluído no livro O Avesso e o Direito, de Albert Camus, Livros do Brasil, s/d)
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(...) Sim, toda a sua vida mantivera o mesmo ar receoso e submisso, embora distante, a mesma expressão com que assistia trinta anos atrás, sem intervir, ao espancamento de Jacques (o próprio autor, Albert Camus) com o pingalim da mãe, ela que nunca tocara nem ralhara verdadeiramente com os filhos e cujas chibatadas também a martirizavam, mas, impedida de intervir pela fadiga, o alheamento da expressão e o respeito devido à mãe, não se opunha, suportara-o ao longo dos dias e dos anos como aguentara para si própria o duro dia de trabalho ao serviço dos outros, os soalhos lavados de joelhos, a vida sem homem e sem consolação no meio dos restos gordurosos e da roupa suja dos outros, os dias intermináveis de dor unidos uns aos outros para levar uma vida que, à força de ser destituída de esperança, se convertera igualmente numa existência sem ressentimentos de qualquer espécie, ignorante, obstinada, resignada a todos os sofrimentos, tanto os seus como os alheios. Nunca alguém a ouvira queixar-se, senão para dizer que estava cansada ou lhe doíam os rins depois de uma lavagem de roupa prolongada. Ele jamais a ouvira dizer mal de ninguém, senão para referir que uma irmã ou uma tia não fora amável com ela, ou se mostrara "arrogante". Mas, em contrapartida, raramente a vira ou ouvira rir com gosto. Ria um pouco mais agora que já não trabalhava desde que os filhos podiam satisfazer as suas próprias necessidades. Jacques olhava a sala que também não mudara. A mãe não quisera abandonar o apartamento onde tinha os seus hábitos, o bairro onde tudo lhe era fácil, trocando-o por outro mais confortável, mas em que tudo se tornaria mais difícil. Sim, era a mesma sala. Tinham sido mudado os móveis, agora decentes e menos miseráveis. (...)
[In O Primeiro Homem, romance (autobiográfico) póstumo e inacabado de Albert Camus, Livros do Brasil, 1994]
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Jeanne (Maria Schneider, 1952-2011): Porque não volta para América?
Paul (Marlon Brando, 1924-2004): Não sei. Más memórias, julgo.
Jeanne: De quê?
Paul:O meu pai era um bêbedo. Durão. Cabrão, zaragateiro. Super-masculino. E era duro. A minha mãe era muito poética. E também uma bêbeda. E uma das memórias quando era miúdo era dela a ser presa nua. Vivíamos numa pequena cidade. Uma comunidade rural. Vivíamos numa quinta. E quando voltava da escola, ela já tinha ido para prisão...ou algo. E eu costumava. Eu costumava ordenhar uma vaca, sempre de manhã e à noite e gostava disso. Lembro-me. Uma vez estava para sair com uma rapariga, para ir a um jogo de basquetebol. E ia para sair e o meu pai disse: "Tens de ordenhar a vaca". Eu disse: "Não se importa de o fazer?" e ele disse: "Não, mexe esse cu". Por isso saí à pressa e não tive tempo de mudar de sapatos. E tinha os sapatos cheios de bosta. E à ida para o jogo de basquetebol, o carro tresandava. Não sei. Lembro-me pouco de coisas boas.
Jeanne: Nem uma?
Paul: Sim, algumas. Havia um agricultor, um tipo porreiro. Velho muito pobre e trabalhava mesmo muito. Eu trabalhava numa vala, drenando terra para a quinta. E ele usava fato de macaco e fumava um cachimbo de barro. Metade do tempo não punha tabaco no cachimbo. E eu odiava o trabalho. Fazia calor, a sujidade e...dava cabo das minhas costas. E todo o dia via o cuspo dele que corria pelo cabo e ficava no colector do cano. E costumava apostar comigo mesmo para ver quando o cuspo caía. E perdia sempre. Nunca o vi cair. Olhava para o lado e desaparecia e depois já lá estava outro. E depois tínhamos uma bela...A minha mãe ensinou-me a amar a natureza. E acho que era o melhor que sabia. E tínhamos ...Em frente da casa tínhamos um terreno grande...um prado. Era um campo de mostardeira no Verão...E tínhamos uma cadela preta chamada Dutchy. Costumava caçar coelhos nesse campo, mas não os conseguia ver. Tinha de saltar na mostardeira e olhar em volta muito depressa, para ver onde estavam os coelhos. Era muito bela. E nunca apanhava os coelhos.
[In O Último Tango em Paris (1972), filme franco-italiano da autoria de Bernardo Bertolucci (1941-2018)]
Albert Camus (1913-1960) começou na prática a sua carreira literária com uma trilogia. Essa trilogia é constituída, em primeiro lugar, pela "versão ficcional", com o romance O Estrangeiro (1942), em segundo lugar, pela "versão filosófica", com o ensaio O MIto de Sísifo (1942), e, em terceiro lugar, pela "versão dramatúrgica", com a peça de teatro Calígula (concluída em 1938 e estreada em 1944). Estas três obras têm em comum uma coisa - o absurdo. É por esse motivo que a tal trilogia se dá o nome de a trilogia do absurdo. [Diga-se de passagem que Camus viria a produzir mais uma trilogia, a da "revolta", com o romance A Peste (1947), a peça de teatro Estado de Sítio (1948) e o ensaio filosófico O Homem Revoltado (1951)]
Voltando à primeira trilogia, convirá acrescentar que era preciso todavia completar esse tríptico com a "versão cinematográfica" do absurdo. Ora bem, dar corpo a esse "painel" em falta foi o que se encarregou Bernardo Bertolucci de fazer e fê-lo em 1972, com o filme O ÚLTIMO TANGO EM PARIS.
Sublinhe-se desde já que a película não é a adaptação de nenhuma obra de Camus e, muito menos, de O Estrangeiro, de cuja transposição para o cinema se havia já incumbido Luchino Visconti, em 1967, com os problemas (em especial com a viúva do escritor) que são aliás do domínio público. Bernardo Bertolucci não foi por aí. Livro e filme contam histórias diferentes, conquanto ambos tenham como mote essencial, entre outras coisas, o absurdo. Por isso, a película é um misto de particularidades do citado romance e de aspectos biográficos de Camus [uma entre várias pistas, no encontro entre Paul e o amante de Rosa, Marcel, (Massimo Girotti), vê-se no centro de uma das paredes do quarto deste último, em grande plano, um cartaz com uma das mais conhecidas fotografias de Albert Camus, com um leve sorriso, de gola do sobretudo levantada e cigarro pendente dos lábios], de Paul (o anti-herói do filme), de Meursault (o protagonista do romance) e do próprio Marlon Brando, como homem, como actor, e como intérprete, no papel de Paul.
Comecemos pelo início: à imagem do romance, o filme tem como prólogo a morte de uma mulher, no caso, de Rosa, a esposa de Paul, que se suicidou na banheira, aparentemente cortando os pulsos com uma navalha de barbear, sem deixar qualquer explicação e deixando o marido (à sua maneira) profundamente devastado. Eis o que diz a versão literária logo a abrir: Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames". Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem. (...) (In O Estrangeiro, romance de Albert Camus, Livros Unibolso, Editores Associados, s/d)
Dissemos que Rosa se suicidou e que esse facto constitui também a abertura do filme? Sim, é verdade, mas eis como principia a segunda parte da trilogia do absurdo, ou seja, O Mito de Sísifo: Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. (...) (O Mito de Sísifo, de Albert Camus, Livros do Brasil, s/d)
Todo o filme gira em torno de problemas como a morte, o suicídio, o sexo, o amor, a solidão, o prazer, a dor, numa palavra, em torno de problemas como o sentido e o significado da vida. Na fita pululam os personagens do absurdo tal como os estudou e analisou Camus no seu referido ensaio O Mito de Sísifo, e, de entre eles, o mais absurdo de todos - Paul (ou, se quisermos, até mesmo Marlon Brando), o amante insaciável, o predador sexual, o actor, o aventureiro.
E quem é Paul? Além de que é um expatriado norte-americano ("estrangeiro", literalmente e em tudo o resto...) e viúvo de Rosa, de quem herdou a pensão que agora dirige, não se sabe muito a seu respeito e também de Meursault pouco se fica a saber no romance. É a criada da pensão Catherine (atriz: Catherine Allegret) na vida real, nome da mãe de Camus (que, também ela, foi mulher-a-dias, entre outras ocupações menores) da avó materna e da filha, é Catherine, dizíamos, que, enquanto vai lavando a casa de banho do sangue que Rosa deixou, revela a Paul a presença dos investigadores da polícia, na pensão, por causa do suicídio daquela, e de alguns pormenores da biografia do seu empregador que os mesmos investigadores informalmente lhe foram dando a conhecer: O seu patrão é um homem incerto. Sabia que ele jogou boxe? Mas não deu resultado. Foi tocador de bongo, revolucionário na América do Sul, jornalista no Japão. Um dia desembarca no Tahiti; ficará por algum tempo, aprende francês. Depois veio até Paris. Aí encontra uma mulher com dinheiro, casa com ela e...desde aí o que é que o seu patrão fez? Nada.
Como atrás ficou dito, tudo isto assenta num encadeado biográfico que abrange Paul, Marlon Brando, Albert Camus e o próprio Meursault. Mas é Paul que, já na parte final do filme, e sobre si próprio, transmite à sua amante Jeanne mais dados pessoais esclarecedores: Tenho 45. Temos um pequeno hotel, uma entulheira. Mas não é uma pensão barata. E costumava viver à minha sorte, e casei. A minha mulher matou-se. Mas sabe, que se lixe. Não sou nenhum prémio. Apanhei um esquentamento em Cuba em 1948 e agora tenho uma próstata do tamanho de uma batata gigante. Mas ainda sou um homem com uma boa verga, mesmo que não possa ter filhos. Vejamos. Não tenho terra onde poisar. Não tenho amigos. Suponho que, se não a tivesse conhecido, provavelmente ficaria com uma cadeira dura e hemorróidas. (...)
Quanto a Meursault, tal como Paul, tem mais que se lhe diga. Acerca dele, quando julgado em tribunal, profere o procurador da República estas verdades incontornáveis, apontando-lhe o dedo: Meus Senhores, um dia depois da morte da sua mãe, este homem tomava banhos de mar, iniciava relações com uma amante e ia rir às gargalhadas, num filme cómico.
Mas o procurador acrescentou ainda o seguinte: O mesmo homem que, um dia depois da mãe ter morrido, se entregava à mais vergonhosa devassidão, matou por motivos fúteis e para liquidar um inqualificável caso crapuloso.
E disse mais: Sim, acuso este homem de ter assistido ao enterro da mãe com um coração de criminoso.
É ainda Meursault que continua o relato do seu julgamento e em que ele, sem desmentir as acusações, é sempre o protagonista: (...) O discurso do procurador depressa me fatigou. Apenas me impressionaram ou despertaram a atenção alguns fragmentos, gestos, ou tiradas inteiras mas desligadas do conjunto.
O fundo do seu pensamento, se bem o compreendi, é que o meu crime fora premeditado. Pelo menos, tentou demonstrá-lo. (...)
Resumiu os factos a partir da morte da minha mãe. Relembrou a minha insensibilidade, a minha ignorância da idade dela, o meu banho de mar no dia seguinte, com uma mulher, o cinema, Fernandel e por fim o caso com Maria. Levei tempo a compreender nesse momento porque dizia "a amante" e para mim ela chamava-se Maria. (In o já referenciado romance de Albert Camus, O Estrangeiro)
E o que faz Paul, por sua vez, no dia em que soube do suicídio de Rosa, a sua esposa? Pois muito bem, também ele, nesse preciso dia, encontra-se, por mero acaso, com uma desconhecida, uma jovem atraente num apartamento devoluto, de um prédio situado no centro de Paris, apartamento esse em que ambos em princípio estão interessados, e onde, pouco depois, por sua iniciativa e sem qualquer preâmbulo, ele e ela se entregam a uma relação sexual quase animalesca, após a qual, e nos dias seguintes, acontecerão outras no mesmo estilo. São relações sexuais que Paul pretende e exige sejam pautadas pela brutalidade e pelo anonimato dos dois amantes.
Eis o seu primeiro diálogo, depois de se conhecerem intimamente:
Jeanne (significativamente, orfã de um coronel do Exército francês, morto em 1958, na guerra da Argélia; por outro lado, Camus teve uma amiga da juventude chamada Jeanne Sicard):
Não sei o que lhe chamar.
Paul: Não tenho nome.
Jeanne: Quer saber o meu?
Paul: Não, não! Não quero. Não quero saber o seu nome. Não tem nome. Nem eu. Nem um nome.
Jeanne: É maluco.
Paul: Talvez seja, mas não quero saber nada de si. Não quero saber onde vive nem de onde vem. Não quero saber nada.
Jeanne: Assusta-me.
Paul: Você e eu vamo-nos encontrar aqui, sem saber nada do que se passa lá fora. Está bem?
Jeanne: Mas porquê?
Paul: Porque, porque não precisamos de nomes aqui. Não percebe? Vamos esquecer tudo o que sabemos. Tudo. Todas as pessoas, tudo o que fazemos...onde vivemos. Vamos esquecer isso tudo, tudo.
Jeanne: Mas não posso. Pode?
Paul: Não sei.
Jeanne: Está com receio?
Paul: Não.
Pelo seu estranho comportamento pessoal e social, pelas suas idiosincrasias, pelo seu anticonvencionalismo extremo, Meursault e Paul são ambos estrangeiros e é como estrangeiros que agirão até ao fim, no romance e no filme.
Até em termos de crença religiosa, ou da falta dela, evidenciam um e outro o seu posicionamento irreverente e heterodoxo.
Vejamos o que disse e fez Meursault perante o padre que o visita na prisão:
A sua presença pesava-me e irritava-me. Ia dizer-lhe para se ir embora, quando, virando-se para mim, exclamou de repente: "Não, não posso acreditá-lo. Tenho a certeza de que já lhe aconteceu desejar uma outra vida". Respondi-lhe que com certeza, mas que isso era o mesmo que desejar ser rico, nadar muito depressa ou ter uma boca mais bem feita. Era da mesma ordem. Mas ele deteve-me e quis saber como imaginva eu essa outra vida. Repliquei: "Uma vida onde eu pudesse lembrar-me desta vida". (...)
"Não, meu filho - disse-me ele pondo-me a mão no ombro. - "Estou consigo. Mas não o pode saber, porque o seu coração está cego. Rezarei por si".
Então, não sei porquê, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-lhe para não rezar e que mesmo que houvesse um inferno, não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer. Agarrara-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele todo o fundo do meu coração com impulsos de alegria e de cólera. Tinha um ar tão confiante, não tinha? Mas nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher. Nem sequer tinha a certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. (...) (Ibidem)
Atentemos agora no que diz Paul à sua sogra a propósito do enterro de Rosa:
Sogra: Arranjo-lhe um belo quarto com flores.
Paul: Mas não quero padres aqui. Mas nada de padres.
Sogra: Mas, Paul, compreenda. Os funerais devem ser religiosos.
Paul: Não. A Rosa não acreditava! Aqui ninguém acredita no raio de Deus.
Sogra: Paul, não grite. Não fale dessa maneira.
Paul: O padre não quer sucídios. A Igreja não quer suicídios ou quer?
Sogra: Dão-lhe absolvição. A absolvição e uma bela missa. É tudo o que lhe peço. A Rosa é minha filha. Percebe? Rosa...Porque é que se matou?
Paul: Porquê? Porque é que se suicidou? Porquê? Não sabe? Não sabe.
Falámos há pouco em posicionamento irreverente e heterodoxo de Meursault e Paul. Eis como este último mais uma vez se revela, no que toca a esse tipo de atitude, e estamos a referir-nos ao colóquio entre Paul e Jeanne no momento em que esta é sodomizada:
Jeanne: Dá comigo em doida. Que esteja tão seguro que eu volte cá. Acha mesmo que um americano sentado no chão, num apartamento vazio, a comer queijo e a beber água é interessante? É um esconderijo. Não o abra.
Paul: Porque não?
Jeanne: Não sei. Não o abra.
Paul: E aquilo? Posso abrir aquilo?
Jeanne: Espere. Talvez haja ouro.
Paul: Tem medo?
Jeanne: Não.
Paul: Não?
Jeanne: Tem sempre medo. Não mas talvez haja segredos de família lá dentro.
Paul: Segredos de família? Eu digo o que são segredos de família.
Jeanne: O que estás a fazer?
Paul: Vou-lhe falar da família. Essa instituição sagrada da família destinada a incutir virtudes aos selvagens. Quero que repita depois de mim.
Jeanne: Não e não. Não!
Paul: Repita. Diga "Sagrada Família". Vá lá: Sagrada Família. Igreja de bons cidadãos.
Jeanne: Igreja.
Paul: Bons Cidadãos.
Jeanne: Bons Cidadãos.
Paul: Diga. Diga-o. As crianças são torturadas até dizerem a primeira mentira.
Jeanne: As crianças são torturadas até...
Paul: Onde a vontade é quebrada pela repressão. Onde a liberdade é assassinada. Família, você, você...raio, raio de família. Raio de família. Oh Deus...Jesus. Oh, Você...
Em registo semelhante, é o mesmo Paul que, perante o cadáver da mulher, tem o monólogo que se segue:
Pareces ridícula nessa maquilhagem. Como a caricatura duma puta. Um pequeno toque da mamã à noite. A Ophelia fingida, afogada na banheira. Quem me dera que te visses a ti mesma. Ias-te rir. És a obra-prima da tua mãe. Credo! Há demasiadas flores neste lugar. (...)
Durante cinco anos eu era mais um convidado nesta pensão barata do que um marido. Com privilégios, claro. E depois para me ajudar a entender-te, deixaste-me herdar o Marcel. O duplo do marido, cujo quarto era o dobro do seu. E sabes que mais? Não tive coragem de lhe perguntar. Não tive coragem para lhe perguntar se os números que fizemos eram os mesmos que fizeste com ele. O nosso casamento não era mais do que a toca da raposa para ti. E para te pirares, só precisaste de uma navalha de 35 cêntimos e uma banheira. Sua maldita, amaldiçoada puta. Espero que apodreças no inferno. És pior do que o maior porco da rua que alguém pode encontrar. E sabes porquê? Sabes porquê? Porque mentiste. Mentiste a mim e confiei em ti. Mentiste. Sabias que estavas a mentir. Vá, diz que não mentiste. Não tens nada para dizer sobre isso? Podes pensar em algo, não? Vá, diz algo! Sorri, sua cona! Vá, diz-me... diz-me algo amável. Sorri para mim e diz que entendi mal. Vá, diz. Sua fodilhona de porco! Sua porca mentirosa. Rosa. Desculpa. Eu não consigo suportar ver estas coisas na tua cara.. Nunca usaste maquilhagem. Esta merda. Vou tirar-te isto da boca. Este baton...Rosa...Oh, Deus! Lamento não sei porque o fizeste. Eu também o faria, se soubesse como. Não sei como. Tenho de descobrir como.
Ficou já assinalado que, tal como sucede no livro, o filme começa com a morte de uma mulher. É também com a morte, mas agora de um homem, que ambos terminam - a de Meursault, na guilhotina por condenação judicial, e a de Paul, baleado inesperadamente por Jeanne, em casa desta. E é com o breve delírio final da mesma Jeanne que concluímos esta explicação de O Último Tango em Paris (meio século depois):
Não sei quem ele é. Ele seguiu-me na rua. Ele tentou violar-me. É um lunático. Não sei como se chama. Não sei o nome dele. Não sei quem ele é. Ele tentou violar-me. Não sei. Não o conheço. Não sei quem ele é. Ele é um lunático. Não sei o nome dele.
O EXCEPCIONAL SOM NASALADO DAS PALAVRAS PROFERIDAS PELOS FALANTES DIRECTAMENTE ORIGINÁRIOS DAS LÍNGUAS INDO-EUROPEIAS
(Texto revisto e actualizado)
O Indo-Europeu foi uma língua falada na Europa há cerca de sete mil anos. É do Indo-Europeu que derivam quase todos os actuais idiomas utilizados no velho continente (com pequenas excepções como o basco, o finlandês, o húngaro e o estónio), em partes da Ásia, nas ex-colónias de países europeus espalhadas pelo mundo e, antes deles, as línguas mortas como o Latim e o Grego antigo. (O Sânscrito é uma outra língua morta de origem indo-europeia e que existiu na Índia). Estas línguas fazem parte do chamado grupo ou família das línguas indo-europeias.
Uma vez que, durante a existência e utilização do Indo-Europeu, a escrita ainda não fora inventada e, portanto, não restam registos documentais desse idioma, como é que sabemos da sua existência? Sabemos dessa existência, por um lado, devido à semelhança entre diversas palavras das actuais línguas indo-europeias, tais como "mãe", "pai", "natureza", "água", etc. e, por outro, em razão da semelhança estrutural entre as letras dos referidos idiomas e também entre os seus próprios abecedários. Tais similitudes sugerem claramente um tronco comum às referidas línguas indo-europeias.
Mas há ainda mais uma semelhança muito importante entre as mencionadas línguas, semelhança essa que acaba por ter que ver com o objecto do estudo a que aqui se vai proceder e que se encontra, de resto, resumido no título do presente texto. Trata-se do som nasalado das palavras desses mesmos idiomas, quando tais palavras são proferidas pelos falantes directamente originários das línguas indo-europeias. Mais adiante explicaremos o sentido exacto da expressão "falantes directamente originários das línguas indo-europeias". Diremos, desde já, que o som nasalado das palavras, pronunciadas pelos falantes directamente originários das línguas indo-europeias, se deve, na sua fase inicial de formação, essencialmente ao nariz afilado desses mesmos falantes - nariz afilado, ou, com mais propriedade, nariz apertado, o que, como se sabe, está na origem do som roufenho ou fanhoso das palavras. Esta característica das línguas indo-europeias (o som nasalado das palavras produzido pelos seus falantes originários) é uma excepção quando comparada com o que acontece com outras línguas ou com outros grupos de línguas à escala universal. Nestes últimos casos, dada a inexistência de nariz afilado ou nariz apertado, o som das palavras é sempre oral e não nasalado. Ou seja, o som oral das palavras é a regra e o som nasalado a excepção. É preciso sublinhar que o som nasalado das palavras das línguas indo-europeias (no caso) adquiri-se, independentemente de factores anatómicos, quando se nasce e/ou se cresce em países de línguas indo-europeias (por exemplo, na Europa) ou quando se nasce e também se cresce, conquanto fora dos mesmos países, no seio de famílias de línguas indo-europeias com iguais origens geográficas, portanto, no seio de famílias de falantes directamente originários de línguas indo-europeias. É a essas categorias de falantes de línguas indo-europeias que chamamos de "falantes directamente originários" das línguas indo-europeias. Os falantes não directamente originários das línguas indo-europeias (ou, se se quiser, os falantes indirectamente originários das línguas indo-europeias) são aqueles que utilizam esses idiomas não só com pronúncias ou sotaques diferentes (por exemplo, falantes das ex-colónias de países europeus) mas também com o som oral das palavras e, por conseguinte, sem o som nasalado atrás referido. Tal só não sucede com os falantes brancos da língua inglesa, os chamados anglo-saxões, e essa circunstância resulta basicamente da ausência de interpenetração racial da parte desses mesmos povos. Nestes casos, (Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) a língua, embora com pronúncias ou sotaques diferentes, manteve o som nasalado das palavras, e, no que respeita aos Estados Unidos, de forma bastante acentuada como, aliás, facilmente se constata. No que se refere a este último país convirá frisar que os negros ou afro-americanos, ainda que com pronúncia (ou mesmo sotaque) da língua inglesa igual à pronúncia dos brancos ou caucasianos, diferem destes fundamentalmente no som das suas palavras que é oral e não nasalado. O som oral das palavras proferidas pelos afro-americanos foi levado pelos escravos negros, de 1619 em diante, ao passo que o som nasalado das palavras articuladas pelos brancos foi transportado pelos colonos britânicos a partir do século XVII. [Ainda no âmbito dos Estados Unidos, importa acrescentar que o som oral das palavras é também uma característica dos Índios, das comunidades latino-americanas e dos imigrantes oriundos de África (continente e ilhas, sem qualquer excepção) e da Ásia].
De regresso à aquisição do som nasalado das palavras, proferidas pelos falantes directamente originários das línguas indo-europeias, há que realçar que se trata de uma aquisição natural e espontânea e que acontece desde tenra idade. Essa aquisição não depende, por conseguinte, da aprendizagem ou apropriação consciente e muito menos pode ser mimetizada (a imitação do som nasalado das palavras soaria ridícula). E mais: ao contrário do que sucede com a pronúncia ou o sotaque, o som das palavras (quer o nasalado, quer o oral) uma vez adquirido, nunca se perde; perdura ao longo das vidas dos respectivos falantes, independentemente do lugar ou ambiente onde estes vivam. Também ao invés do que ocorre com a pronúncia ou o sotaque, que variam consoante as regiões (de uma mesma língua) e até consoante as classes sociais, o som das palavras (de novo quer o nasalado, quer o oral) é mais igual e democrático em todos os falantes, para lá das regiões ou classes sociais a que pertençam. Por ser assim é que o som das palavras (nas duas variantes, oral e nasal) acaba por ser, em certa medida, um dos traços distintivos fundamentais de qualquer língua viva.
CONVERSAS EM TEMPOS DE PÓS-PANDEMIA E DE GUERRA
(A PROPÓSITO DA MORTE DE UM ESCRITOR E A SUA GRAFOMANIA COLOSSAL)
Os dois amigos estão em Sevilha, onde passaram um fim-de-semana assistindo a dois concertos de música oferecidos pelo município local, com a actuação da Real Orquestra Sinfónica da dita cidade e sobre duas obras de Beethoven (Quinta e Nona Sinfonias) e uma de Mozart (40ª. Sinfonia). A conversa de hoje tem lugar no restaurante do hotel, no qual se hospedaram por três dias, e essa conversa aconteceu durante o almoço e a seguir à mesma refeição.
ERNESTO LIMA VITORINO: Desta vez vou iniciar a nossa já habitual troca de palavras contando uma meia anedota, também verídica, e tendo de novo como protagonista o tal advogado da minha cidade (salvo seja), cidade em que tudo volta a ocorrer. Eis a cena: no écran começava a ser projectado o genérico de um conhecido documentário francês, intitulado "Dante Visto por Rodin". No meio do silêncio que reinava na sala do cinema, ouviu-se o mesmo causídico, sentado na plateia, dizer em voz alta e de forma descontraída: "Dante, sei quem é; do outro, nunca ouvi falar" . (Diga-se que o próprio Dante, esse nosso herói só o conhecia de nome, pois nunca tinha lido qualquer livro seu e, muito menos, o mais célebre de todos, a obra-prima, "A Divina Comédia". Mais um exemplo da cultura de ouvido que era, e continua a ser, a cultura de muita gente que fui encontrando pela vida fora e nos mais diversos escalões sócioprofissionais).
Dito isto, e by the way, vou fazer-te um pequeno teste de cultura geral. Diz-me lá quem é o autor do trecho que te passo a ler. Ouve: (...) (Porque) António Mega Ferreira falhou o encontro com a "grande obra" com que sonham todos os romancistas. Prisioneiro da sua "monstruosa curiosidade, inquieta e quase sempre dolorosa", António Mega Ferreira consumiu-se em dezenas de livros, entre novelas e noveletas, biografias literárias e biografias históricas, cadernos de viagem e apontamentos diversos, numa espécie de grafomania colossal, explanada nos milhares de cartas que constituem as suas correspondências com este e aquele, ao sabor do impulso da escrita e de comunicação. O mesmo texto acrescenta ainda que (...) Esta dispersão quase inumana, (...) esta dispersão define-lhe o carácter inquieto, inconstante, curioso e diverso. Fim de citação. Repito a pergunta: quem é o autor das palavras que eu acabei de parafrasear?
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA : Com toda a sinceridade, não sei responder a essa questão. A minha cultura geral não vai tão longe. Contudo, e acerca ou a propósito de António Mega Ferreira, talvez tenha qualquer coisa para dizer, o que farei mais à frente e quando for caso disso.
ERNESTO LIMA VITORINO: Em boa verdade, e para começar, tais palavras são do próprio escritor aparentemente visado (António Mega Ferreira) e têm como alvo real o autor judeu austríaco, Stefan Zweig (1881-1942).
Mega Ferreira (1949-2022) escreveu-as no seu livro RETRATOS DE SOMBRA (Assírio & Alvim, Abril de 2003) em cuja contracapa se pode ler o seguinte: Em dezanove textos biográficos, de Camilo a Mário Soares, de Churchill a Giorgiu Armani, uma galeria de personagens que fazem parte da experiência, jornalística e literária, do autor. São perfis, entrevistas, apontamentos, ou simples percepções da sombra que cada um deles projectou no seu ângulo de visão: Borges, Yourcenar, e Chostakovich, mas também Pessoa, Oscar Wilde, Stefan Zweig, Pascoaes.
Ora, Stefan Zweig é o retratado da página 91 e num texto de 2003 (quando Mega Ferreira já contava com pelo menos dez obras literárias no activo) falar de grafomania colossal, a propósito daquele autor vienense, soa a premonição certeira em relação ao próprio Mega Ferreira, que, num furor scribendi fora de série, iria produzir, no tempo de vida que lhe restava, mais de uma trintena de textos em forma de livros. Para alguém que começou a carreira literária já tarde, aos 36 anos de idade, publicar a partir daí para cima de quarenta obras, só mesmo da parte de quem também estava possuído pela tal grafomania colossal e quereria (quem sabe?) recuperar a todo o transe o tempo perdido. E, em termos quantitativos, de certo modo o conseguiu. Basta assinalar que nesse referido ano de 2003 (o seu annus mirabilis) Mega Ferreira iria dar à estampa nada menos do que 5 (cinco!) trabalhos, todos de índole literária.
Volto ao livro em questão. Dezanove retratos? Não, senhor. Vinte retratos, contando com o que Mega Ferreira, de modo voluntário ou não (quem sabe?), desenhou inspirando-se em si mesmo e cuja conclusão mais óbvia é a de que esse antigo jornalista e gestor falhou (em cheio, diria eu) o encontro com a "grande obra" com que sonham todos os romancistas. Mega Ferreira não podia ser mais profético a respeito de si próprio.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Já que falas de António Mega Ferreira, trata-se, como sabes, de uma pessoa que eu não conheci em vida e contra a qual, como é óbvio, nada me move. Aliás, o mesmo sucede contigo. É uma particularidade nossa (dos dois) desconhecer figuras públicas, sem as quais, de resto, passamos muito bem. Portanto, repito, nada contra Mega Ferreira. A verdade é que, nas décadas de oitenta, noventa e na primeira década deste século, talvez influenciado pelo que a comunicação social, numa estranha unanimidade, lhe ia prodigalizando, em matéria de elogios e de homenagens várias, fui lendo com mais ou menos atenção e interesse o que Mega Ferreira publicava na imprensa e em forma de livro e confesso que essa experiênca resultou num certo encanto da minha parte. No entanto, o tempo foi passando, deixei de ler António Mega Ferreira e também deixei de pensar nele. Ainda antes de morrer, Mega Ferreira já tinha em grande medida caído em desuso (nas suas próprias palavras, referindo-se a Stefan Zweig) ou no esquecimento geral e também no meu. E se calhar de igual modo no teu. Agora, de repente, quando soube do seu falecimento, lembrei-me, quiçá por mera curiosidade (quem sabe?), de reler alguns dos seus livros que, no decorrer dos anos, fui deixando repousar tranquilamente nas estantes da minha biblioteca. Confesso que fiquei desapontado. Estava longe do relativo fascínio que essas obras no passado me tinham provocado, quer do ponto de vista substantivo, quer do ponto de vista formal. Sobretudo do ponto de vista formal. O que é que se passou entretanto comigo?
ERNESTO LIMA VITORINO: Sei do que falas e comigo também aconteceu algo do género. Lembrei-me, como tu, de passar os olhos por algumas das produções de Mega Ferreira quando soube do seu óbito. (Alíás, foi assim que redescobri o citado RETRATOS DE SOMBRA, o livro de Mega Ferreira que está a ser um dos leitmotivs deste nosso diálogo). E também fiquei decepcionado. Ou melhor, não fiquei com a impressão de todo positiva que a prosa (ficção e não-ficção), e também em parte a poesia, de Mega Ferreira me haviam causado aquando das primeiras leituras, vinte ou trinta anos antes. Perguntaste: o que se passou entretanto? Ora, deu-se em nós o que se chama o apuramento do sentido crítico. Os textos são os mesmos, mas nós é que já não somos os mesmos. Porquê? Porque evoluímos. Porque amadurecemos. Porque entretanto continuámos a ler, e a ler, além de jornais e revistas de toda a espécie e feitio, outros autores muito melhores do que Mega Ferreira. Porque fomos ouvindo outras pessoas de cultura com as quais interagimos. Porque fomos vendo filmes, teatro, televisão. Porque fomos ouvindo rádio e discos. Em suma: porque tudo isto nos foi abrindo cada vez mais os horizontes. Há que notar que o apuramento do sentido crítico não acontece apenas no que toca às obras de carácter literário. Sucede com tudo o que respeita à vida, em geral, e à criação artística ou mesmo cultural, em particular - música, cinema, teatro, artes plásticas e também literatura. Do que nós gostámos na nossa juventude (música, filmes, peças de teatro, romances ou poesias) pode deixar de nos agradar na meia-idade. E vice-versa. Mas o apuramento do sentido crítico acontecerá com todos nós? Não. Longe disso. Existem pessoas cujo sentido crítico não sofre qualquer apuramento, primeiro, porque não tiveram as referidas experiências culturais por nós vivenciadas e, segundo, porque essas pessoas não possuem qualquer sentido crítico susceptível de apuramento. É tão simples quanto isto. Conheci pessoas (e tu também, com certeza) que leram maus livros e maus autores (ou mesmo autores medianos) na juventude e deliciaram-se com tais leituras e tais autores e continuaram a deliciar-se com eles até à morte. (Pessoas que até eram qualificadas de intelectuais). Pessoas que, desde sempre, se assumiram como leitores incondicionais de romances policiais baratos e de romances de aventuras, ou outros de género equivalente, e continuaram pela vida fora a ser leitores incondicionais de romances policiais baratos e de romances de aventuras. Pessoas que (num patamar acima, apesar de tudo) leram com sofreguidão Stefan Zweig ou Somerset Maugham (1874-1965) na juventude e ainda hoje consideram os romances Vinte e Quatro Horas na Vida de Uma Mulher e Servidão Humana os romances das suas vidas. E, no entanto, trata-se de escritores que se situam numa certa mediania e aos quais Harold Bloom (por exemplo) não dispensou uma vírgula sequer na sua famosa obra O Cânone Ocidental. [Seria, de resto, interessante trazer para aqui uma lista dos autores ignorados pelo mesmo ensaísta, no seu mencionado livro, e (quem sabe?) talvez ainda o venha a fazer um dia. Sou capaz de apostar que um tal rol dos não-canónicos deixaria muita gente surpreendida. Claro que não me refiro aos escribas de África, Ásia, América Latina e outras geografias do Terceiro Mundo, pois estes não entram tão-pouco neste tipo de contabilidade. Estou a pensar antes em escritores europeus e norte-americanos que Harold Bloom deixou fora das suas afinidades electivas. (Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos)] .
Mas regressemos aos autores em relação aos quais mudamos de opinião (para pior) com o apuramento do nosso sentido crítico. Tal mudança de juízo sucederá com todos os criadores? Não. Ocorre com aqueles que se situam na mediania ou pouco mais. É evidente que os génios estão ausentes desta equação. Falando apenas de escritores, há um prazer renovado, e até de novas descobertas, de cada vez que lemos autores (sobretudo os canónicos) como William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Tolstoi, Tchekov, Dostoiévski, Flaubert, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges, etc., etc. Estes homens escreveram para o presente e para o futuro. Escreveram para a eternidade e daí o facto de serem permanentemente actuais. Daí o facto de extrairmos deles novas revelações de cada vez que os lemos. Estão sempre a iluminar-nos. Estão sempre a mostrar-nos novos caminhos.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Mas retomando o caso de Mega Ferreira, na qualidade de um autor que nos iludiu às primeiras leituras de obras suas, apontaste dois bons exemplos no mesmo género: Stefan Zweig e Somerset Maugham. Ambos, entre muitos outros, foram leituras da minha juventude e, diga-se, com algum entusiasmo. Servidão Humana, de Somerset Maugham, e Vinte e Quatro Horas na Vida de Uma Mulher, de Stefan Zweig, lidos nos meus dezoito anos, ao lado de outras criações ao mesmo nível, deixaram-me extasiado. Diria mesmo: deixaram-me deslumbrado. Foram durante vários anos referências da minha vida. Mas isso depois passou. Tais romances deixaram de ser referências da minha vida. Foram substituídos por livros e autores mais avançados em termos literários. Foram substituídos pelos génios, ou, se quiseres, pelos canónicos. Deu-se em mim o mesmo que em ti - o apuramento do sentido crítico. Hoje não vejo esses livros (os da mediania ou os sofríveis) da mesma forma que os vi na juventude. É um facto que continuam a figurar nas minhas estantes e até nem me arrependo de os ter lido. Vou mais longe: se voltasse atrás, no tempo, mesmo sabendo o que sei hoje, voltaria a lê-los. Aliás, de vez em quando, não resisto à tentação de os reler, quanto mais não seja, para comparar as impressões que me deixaram na juventude com as que me deixam agora. Para avaliar o meu sentido crítico actual. Trata-se de exercícios culturais a que toda a gente devia entregar-se. Mas só como exercícios culturais.
ERNESTO LIMA VITORINO: Compreendo as tuas palavras. E o exemplo de Somerset Maugham é a vários títulos porventura o mais elucidativo. Conheço uma situação que se deu com ele e que resume quase tudo o que de bem e de mal se pensa e se diz a seu respeito e que vale a pena aqui recordar e analisar.
Em 1947, a já extinta Atlântida - Livraria Editora, Ltdª. /Coimbra publicou, na sua colecção Antologia do Conto Moderno, um livro dedicado a Somerset Maugham, com selecção, (dos contos), tradução e prefácio de José Palla e Carmo e Victor Palla (sim, é esse mesmo, o já falecido padrasto do primeiro-ministro António Costa, e um conhecido militante do Partido Comunista Português). No prefácio, diz-se, a respeito do mesmo autor e os seus trabalhos, entre outras coisas, o seguinte:
"Servidão Humana" é uma daquelas quase auto-biografias que surgem na obra de certos grandes romancistas: Philip Carey (o protagonista) tem tanto de Maugham como de Dickens o seu David Coperfield. É no romance de Philip Carey que aparece a mais fascinante personagem feminina de Maugham - Mildred, trágica na inevitabilidade do vício (e que se apresenta de certa maneira à Rose Driffield de Cakes and Ale). A solução de Philip é discutível; e mesmo o leitor que a aceita não pode ao menos deixar de sentir que a composição fecha mal. Mas o livro ficará como um dos grandes romances humanos do nosso século.
Cakes and Ale (Destino de Um Homem), publicado em 1930, é a biografia do imaginário escritor Edward Driffield (provavelmente Thomas Hardy), e uma brilhante sátira aos escritores e críticos literários.
Nesta antologia está incluído um conto que trata o mesmo meio e com idêntica atitude irónica: O Impulso Criador. É uma das mais saborosas charges de Maugham. Na verdade, pode sentir-se à vontade a zombar dos autores herméticos e desprezados pelo grande público este homem que alcançou um êxito popular raro num escritor da sua categoria. Maugham, hoje, pode realmente gabar-se de merecer tanto as atenções do leitor médio como as do exigente crítico profissional. E, como tal, pode troçar das pequenas obras-primas de redoma da Senhora Forrester - e aliar-se ao Senhor Forrester, que fugiu com a cozinheira e com ela lia romances policiais.
(...) Maugham também denuncia como falsa toda a série de preconceitos de elite que se formaram à volta duma falsa concepção da superioridade da cultura. Leiam-se os contos Vermelho e A Porta da Eternidade. São as melhores ilustrações que poderíamos desejar para as palavras de Maugham: "É um preconceito dos tolos o de que só os seus conhecimentos contam. A verdade, o Bem, o Belo não são a recompensa dos que frequentaram escolas caras, roeram bibliotecas, visitaram museus".
Esse desmascarar vai ao mais profundo da alma e revela-nos todas as fraquezas e contradições da alma humana. (...) Em Chuva, o caso do Reverendo Davidson é-nos contado com uma naturalidade tal que só torna mais terrível a simplicidade dramática do desfecho. Fim de citação.(Os sublinhados são meus).
Dez anos depois, ou seja, em 1957, foi publicada a 2ª. edição da mesma obra e nela os referidos irmãos José Palla e Carmo e Victor Palla não só incluem sem qualquer alteração o prefácio da 1ª. edição, como ainda acrescentam um segundo prefácio. E o que é que nos transmite este segundo exórdio? Apenas isto: os Pallas dão o dito por não dito. De um proémio para o outro, no concernente ao que pensam os manos acerca de Somerset Maugham, há uma volta de 180 graus. Apearam-no de um pedestal para o fazerem estatelar-se com enorme fragor. Tiraram-no dos píncaros e colocaram-no na valeta. E afinal o que dizem eles agora? Volto aos mesmos prefaciadores para citar algumas passagens do que escreveram no segundo prólogo. Escuta:
O decurso do tempo deve acarretar para o crítico um juízo mais inflexível em relação a autores anteriormente estudados, mormente quando eles - longe de reafirmarem as anteriores ou revelarem novas qualidades - optam por estagnação satisfeita e auto-suficiente que, em geral, por decantação, lhes apura os defeitos.
Grave é pois o caso de William Somerset Maugham, que não só reincide nos aspectos negativos da sua já conhecida produção como envereda francamente por uma senda de retrocesso.
Dez anos após a primeira edição desta antologia e procedendo-se a um balanço actualizado da obra de Maugham (uma vintena de romances, cerca de trinta peças de teatro e mais de sessenta contos) acentua-se o saldo negativo: Catalina e Then and Now são exemplos duma decadência de forma e ideia que um normal sentido de auto-crítica pudera quiçá minorar ou atalhar. Mas desse sentido de modéstia sempre o nosso Maugham fora notoriamente falho. (...)
Não causará surpresa esta sua atitude a quem tivesse já perscrutado, na sua obra, o seu confessado e quase exclusivo amor pelo "enredo, incidentes e caracterização das personagens" como elementos necessários e suficientes para um bom romance. E também não será de espantar a quem anteriormente se tivesse apercebido de que a maior parte da vitória de Maugham se deve mais à perisistência, à indústria e ao domínio do ofício do que à originalidade e ao génio criador. Mais artífice do que artista, Maugham acabaria por revelar o seu comodismo conformista e indiferente perante uma maior profundidade de tratamento. (...)
(...) Repare-se, aliás - o que ressalta da simples leitura dos contos que se seguem - que é sempre o mesmo processo de que Maugham se serve para revelar as profundidades da natureza humana que persegue: consiste em descrever a personagem duma dada maneira, circunscrevendo o seu carácter em fronteiras aparentemente fechadas - para depois, no fim do conto, a fazer proceder de forma contraditória à contida nas premissas em que a apresentara. (...)
E porque, como tal (um excepcional contador de histórias, nas palavras dos prefaciadores), atingiu uma inegável mestria, sejamos, ao menos misericordiosos, e passemos a reler estes contos - representativos de um Somerset Maugham ideal a que o Somerset Maugham real está quase sempre longe de corresponder. Fim de citação.(Os sublinhados voltam a ser meus).
Vamos por partes e comecemos pelo princípio. Quando a primeira edição da obra em causa foi publicada, e também, é claro, o seu primeiro prefácio, isto é, em 1947, Somerset Maugham era já um respeitável cavalheiro de 73 anos de idade e era já senhor de uma não menos respeitável carreira literária, que se estendia por 50 anos (começou em 1897) e compreendia largas dezenas de trabalhos de ficção e não-ficção. Quase toda a sua produção literária fora já objecto de lançamento editorial, sobretudo os seus títulos mais importantes e que mais receptividade tiveram junto do grande público. Estamos a falar das seguintes obras [nove romances e um livro de histórias de espionagem (O Agente Britânico)] e a ordem, como se verá, é a cronológica: Lisa, a Pecadora (1897); O Mágico (1908); Servidão Humana (1915); A Lua e Cinco Tostões (também editado com o título Um Gosto e Seis Vinténs) (1919); O Véu Pintado (1925); O Agente Britânico (1928); Destino de Um Homem (1930); A Outra Comédia (1937); Um Casamento em Florença (1941); O Fio da Navalha (1944).
Goste-se ou não se goste de Somerset Maugham, goste-se ou não se goste destas suas dez obras de ficção, é no essencial por elas (e pouco mais) que o seu autor deve ser julgado e não por meia dúzia de livros irrelevantes que ele publicou já na fase final da sua carreira literária.
Ora, assim sendo, e conhecendo os prefaciadores, como era seu dever conhecer, todo o percurso literário de Somerset Maugham, à data da primeira edição da antologia em apreço e do respectivo prefácio (1947), não se percebe que a posteriori tenham colocado esse ficcionista ao nível dos autores que longe de reafirmarem as anteriores ou revelarem novas qualidades - optam por estaganação satisfeita e auto-suficiente que, em geral, por decantação, lhes apura os defeitos, quando, no que toca ao mesmo escritor, as opções do que quer que fosse já estavam todas feitas numa longa carreira literária que, repito, estava praticamente no fim. E, nesse sentido, os dois (!) exemplos apresentados como sinais da decadência (de forma e ideia) de Somerset Maugham (Catalina e Then and Now) além de serem, em termos quantitativos, pouco expressivos, não colhem, uma vez que se trata, nos dois casos, de títulos secundários do mesmo autor. E, quanto ao segundo (Then and Now), até se deu a circunstância de ter sido editado em 1946, ou seja, ainda antes da publicação do primeiro prefácio dos irmãos José e Victor, pelo que não pode ser considerado um exemplo das produções dos escritores que optam por estagnação satisfeita e auto-suficiente que, em geral, por decantação, lhes apura os defeitos.
Por isso e pelas mesmas razões é absurdo afirmar, como fazem os prefaciadores, que "Grave é pois o caso de Somerset Maugham, que não só reincide nos aspectos negativos da sua já conhecida produção como envereda francamente por uma senda de retrocesso.
Note-se que, no que me diz respeito (e presumo que também no teu caso), até estou de acordo com o segundo juízo que os irmãos José e Victor formulam acerca de Somerset Maugham e a sua obra. Revejo-me em absoluto no que dizem, no segundo prefácio, sobre o autor de Servidão Humana. As minhas objecções têm a ver com os motivos que apresentaram para justificar uma mudança tão radical de avaliação que o mesmo ficcionista lhes suscitou, uma década depois, e que ficaram atrás sobejamente transcritos. Teria sido mais razoável (e, vá lá, mais sério) se dissessem que erraram no juízo anterior em virtude do que os próprios reconheceram no início do mesmo preâmbulo e que eu já citei: O decurso do tempo deve acarretar para o crítico um juízo mais inflexível em relação aos autores anteriormente estudados (...) .
Portanto, e em resumo, os irmãos José e Victor deviam ter invocado o que atrás apelidei de apuramento do sentido crítico pelo qual o tempo e outros factores são os grandes responsáveis e desenvolver tal tema no resto do prefácio. Ficaria assim, de certo modo, resolvido o problema do embaraço que sem qualquer dúvida constitui uma alteração tão drástica de opinião a respeito de um escritor, a propósito da reedição de uma obra sua, um decénio depois. Da forma como tudo se passou, não só não resolveram o problema do dito embaraço como o agravaram com desculpas no mínimo esfarrapadas e que, como tal, só convencem os mais distraídos ou os ingénuos. Desculpas, acrescente-se, que em nada beneficiam o juízo crítico, rigoroso e objectivo, de que um escritor, como Somerset Maugham, cuja aceitação, em termos gerais, ainda hoje não é nada pacífica, é merecedor.
Já na recta final desta nossa conversa, não resisto à tentação (sim, é uma tentação...) de regressar uma vez mais ao ponto por onde começámos, quer dizer, ao livro de António Mega Ferreira, RETRATOS DE SOMBRA. A páginas 76, o autor traça, em tamanho reduzido, um retrato de Albert Camus, sendo de notar que, dez anos depois (em Novembro de 2013), viria a publicar, com a chancela da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, um pequeno livro intitulado O Essencial Sobre Albert Camus, livro curiosamente reimpresso em Outubro de 2022, ou seja, dois meses antes do falecimento de Mega Ferreira. Este reafirmou, nos dois textos, o camusiano incondicional que sempre foi, pelo que, em ambos os casos, incide apenas e só sobre os aspectos positivos da vida e da obra de Albert Camus (1913-1960), passando ao largo das facetas mais polémicas ou discutíveis do autor de La Peste.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Por falares de Albert Camus, tenho algumas questões que gostaria de te colocar a respeito desse escritor.
Primeira questão: Albert Camus era ou não era um pied-noir?
ERNESTO LIMA VITORINO: Claro que Camus era um pied-noir. Nascido na Argélia, é certo, mas descendente directo de franceses, pelo lado do pai, e de espanhóis, pelo ramo materno, Camus enquadra-se com toda a propriedade nas definições comummente aceites de pied-noir: Vejamos esta: Termo com que os Franceses designam os seus compatriotas nascidos ou criados na Argélia, e que é considerado como injurioso por alguns, consoante o contexto em que é proferido - hoje diríamos "politicamente incorrecto" ...Nota de rodapé (pgs. 439) do tradutor (Carlos Correia Monteiro de Oliveira) da obra de Bernard-Henry Levy, (1948), intitulada O Século de Sartre (QUETZAL EDITORES, 2000).
Atentemos agora no que nos diz a WIKIPÉDIA sobre o mesmo conceito: Pied-Noir é um termo usado para fazer referência aos cidadãos franceses, e outros de ascendência europeia, que viveram no Norte de África francês, nomeadamente a Argélia francesa, o Protectorado Francês de Marrocos ou o Protectorado Francês da Tunísia, por várias gerações, até ao fim da governação francesa no norte de África entre 1956 e 1962. Em particular, o termo Pieds-Noirs é utilizado por aqueles cidadãos descendentes de europeus que "regressaram" a França assim que Argélia se tornou independente, ou nos meses seguintes.
Já agora vale a pena citar o que a mesma fonte online (WIKIPÉDIA) diz a seguir: Durante a Guerra da Argélia, os Pieds-Noirs apoiaram a administração colonial francesa na Argélia, sendo opositores dos grupos nacionalistas argelinos, tais como a Frente de Libertação Nacional (FLN) e o Movimento Nacional Argelino (MNA).
A WIKIPÉDIA conclui a sua longa e muito esclarecedora exposição sobre o mesmo tema, com a lista de alguns Pieds-Noirs célebres e que transcrevo:
Albert Camus, Prémio Nobel da Literatura de 1957
Albert Delanoë, Presidente da Câmara de Paris
Jacques Attali, economista
Just Fontaine, futebolista
Louis Althusser, filósofo marxista
Yves Saint-Laurent, costureiro
Claudia Cardinale, actriz
Frida Boccara, cantora
A esta lista acrescento eu o nome de Jean Daniel, jornalista, escritor, amigo e apoiante indefectível de Albert Camus.
Portanto, julgo respondida a tua questão: Camus era um pied-noir dos pés à cabeça.
Venha outra questão acerca de Albert Camus.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Camus era um homem de esquerda?
ERNESTO LIMA VITORINO: Camus foi um homem de esquerda na sua juventude. Foi evoluindo com os anos e quando morreu, aos 46 anos de idade, era já um homem de direita. (A uns patetas, que eu cá sei, aconteceu o contrário: começaram ferozmente à direita e estão a acabar ferozmente à esquerda).
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Quantos e quais foram os grandes traumas na vida de Albert Camus?
ERNESTO LIMA VITORINO: Foram três: (1) a questão argelina; (2) a polémica com Sartre e o seu grupo da revista Les Temps Modernes, a propósito da publicação, em 1951, do seu ensaio O Homem Revoltado; (3) e finalmente as suas relações nada pacíficas com o meio intelectual e cultural parisiense. (Nota que salto por cima de dois grandes dramas da vida de Camus: por um lado, a extrema pobreza em que nasceu e cresceu até aos vinte anos e, por outro, uma provável consequência dessa mesma pobreza: a tuberculose pulmonar, que lhe surgiu aos dezassete anos e o perseguiu de forma implacável até à morte. Morte não em decorrência dessa enfermidade, mas sim em resultado de um trágico acidente de viação ocorrido perto de um lugar chamado Petit-Villeblevin, em França, a 4 de Janeiro de 1960).
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Podes falar desses três temas?
ERNESTO LIMA VITORINO: Claro que sim. Vejamos o que poderei dizer sobre a questão argelina. Ou, antes, vou dar, para começar, a palavra ao historiador Tony Judt (1948-2010): A guerra da Argélia, que começou em 1954 e só terminou dois anos após a morte de Camus, quando De Gaulle abriu negociações que levaram à independência argelina, teve apenas um impacto limitado nos franceses metropolitanos. Claro que provocou um golpe militar que, indirectamente, derrubou a Quarta República; e as questões morais suscitadas pelos esforços de França para reprimir a revolta árabe dividiram durante anos as comunidades política e intelectual. Mas para a maioria dos franceses, a Argélia era estrangeira às suas preocupações quotidianas (como a Irlanda do Norte é hoje para a maioria dos Britânicos), desde que nem eles nem os seus filhos estivessem a ser enviados para lá combater. Foi só quando a guerra civil chegou a França, na forma de ataques terroristas praticados pela Organisation Armée Secrète (OAS) de extrema-direita, no começo dos anos 60, que a tragédia da Argélia ganhou outra dimensão em França; mas nessa altura, a guerra estava praticamente terminada e a independência da Argélia era inevitável, o que explica o desespero violento dos seus opositores extremistas.
No entanto, para Camus, a situação era diferente. Ele nasceu e cresceu na Argélia, e foi na experiência desse tempo e desse lugar que se inspirou para escrever a maior parte das suas melhores obras. Filho de emigrantes europeus, não podia imaginar uma Argélia sem a presença europeia, nem conceber que europeus argelinos nativos do seu meio fossem arrancados às suas raízes. A guerra da Argélia, as questões morais e políticas que esta suscitava e os resultados para que apontava - todos eles igualmente insatisfatórios para Camus - colocavam-no numa posição impossível. Já disposto a retirar-se do som e da fúria da vida pública parisiense, e com pouco mais a oferecer aos grandes debates intelectuais de momento, Camus viu-se a discordar cada vez mais de praticamente todas as partes envolvidas no conflito argelino. A intolerância das partes envolvidas, os erros políticos tanto de franceses como de árabes, os indícios cada vez mais claros da impossibilidade de se chegar a um compromisso levaram-no da razão à emoção, e da emoção ao silêncio. Dividido entre as suas posições morais e as suas ligações afectivas, Camus não tinha nada a dizer e nada disse - uma recusa em "se comprometer" com a grande questão moral da época, que lhe valeu a censura de muitos, na altura e desde então. (In O PESO DA RESPONSABILIDADE, pgs.. 190/191, Edições 70, 2018).
Passo agora, como complemento, a citar sobre a mesma questão um outro historiador, o francês Michel Winock (1937):
Em 1957, o autor de O Estrangeiro recebeu o Prémio Nobel da Literatura. Interrogado sobre a sua atitude para com a Argélia, Camus responde: "Estou calado há um ano e oito meses, o que não significa que tenha deixado de agir. Fui e continuo a ser adepto de uma Argélia justa, em que os dois povos vivam em paz e igualdade. Disse e repeti que era necessário fazer justiça ao povo argelino e conceder-lhe um regime totalmente democrático, até que o ódio de parte a parte adquira tais proporções que um intelectual já não possa intervir, por as suas declarações se arriscarem a agravar o terror. Pareceu-me que mais valia aguardar o momento propício à união em vez de fomentar a divisão. (...) Sempre condenei o terror. Condeno igualmente um terrorismo que seja exercido cegamente, nas ruas de Argel, por exemplo, e que um dia possa atingir a minha mãe ou a minha família. Acredito na Justiça, mas defendo a minha mãe antes da justiça". A fórmula permanece associada à sua memória; no entanto, é obscura na sua simplicidade. De facto, Camus nunca aceitou a probabilidade da independência argelina; essa reinvindicação parece-lhe uma das manifestações do "novo imperialismo árabe, nomeadamente do Egipto que, contando com as suas forças, finge assumir a liderança e que, neste momento, a Rússia utiliza para servir a sua estratégia anticolonial ". Para este pied-noir, a era do colonialismo terminou", mas, longe de inferir daí a necessidade da independência argelina, ele recusa-se a servir "o sonho do império árabe (...) à custa do povo europeu da Argélia, e, em última análise, à custa da paz no mundo". Exprime de uma forma trágica a impossibilidade daquilo a que Raymond Aron chama, após a leitura desta última explicação de Camus em 1958, "a atitude do colonizador de boa vontade". Camus morre incompreendido pela sua família intelectual, que o pôs de quarentena e que não lhe perdoou a obstinação. Falando da mãe, a propósito da justiça, Camus não manteve um discurso racional; limitou-se a declarar que a Argélia - onde viviam e repousavam os seus - era para ele uma pátria carnal, da qual não podia imaginar que fosse desapossado. Tal como os jovens oficiais progressistas do Exército francês, Camus sonhava com uma Argélia "justa", voltando as costas ao movimento inexorável da História. A Argélia poderia escapar à descolonização universal? (In O Século dos Intelectuais, Terramar, 1ª. edição, pgs. 558/559, Novembro de 2000)
Vejamos agora o segundo trauma - a polémica de Camus com Sartre e o seu grupo da revista Les Temps Modernes, a propósito da publicação, em 1951, do ensaio O Homem Revoltado. Vou dar de novo a palavra a Tony Judt (no seu citado livro): (...) Certo é que L' homme revolté e o desprezo do autor pelos suas críticas tornaram Camus alvo da ira de Sartre em particular. A condenação pública do livro - e a desvalorização condescendente das capacidades limitadas do seu autor - feriu profundamente Camus ("Não há dúvida de que estou a pagar um preço elevado por este livro. Hoje sinto-me completamente inseguro a seu respeito - e a respeito de mim próprio; somos demasiado parecidos") e acelerou, sem dúvida, a sua retirada da escrita política e da vida pública. Mas as virtudes e os defeitos são um espelho fiel do autor, e Albert Camus foi certamente sincero quando mais tarde garantiu a Roger Grenier que, "de todos os seus livros, L' homme revolté era o que lhe era mais querido". (...) Sartre, claro, não se acanhava. A sua carta aberta a Camus (quando este defendeu L' Homme revolté, em resposta à crítica de Jeanson na revista Les Temps Modernes) deixou os seus sentimentos claros: "E se o seu livro testemunhasse simplesmente a sua incompetência filosófica? Se fosse composto por conhecimentos reunidos à pressa, adquiridos em segunda mão? Se, longe de obscurecer os seus brilhantes argumentos, os críticos tivessem sido obrigados a acender candeeiros para distinguir os contornos da sua argumentação fraca, obscura e confusa? "
Na verdade, Sartre tinha razão, pelo menos no que se referia à estrutura e aos argumentos do livro - e também foi perspicaz, na sua cruel leitura da personalidade de Camus: "A sua mistura de convencimento triste e vulnerabilidade sempre nos desencorajou de lhe dizermos toda a verdade". Mas não foram só as palavras de Sartre que causaram tanta mágoa a Camus; foi o facto de terem sido ditas com a autoridade própria de um homem que frequentara o melhor liceu francês, que prosseguira os estudos na École Normal Superiore e que, como Aron, ficara em primeiro lugar na "agregation" nacional de Filosofia.
Tudo o que Camus podia oferecer como resposta era a sua convicção íntima de que Paris estava repleta de "faux grands hommes" , a reflexão triste (confiada aos seus cadernos) de que "Paris é uma selva cheia de feras com ar suspeito", e a sua famosa imagem em La Chute de Paris como um lago cheio de piranhas capazes de despedaçar uma obra de arte em cinco minutos pelo simples prazer de a destruir. Mas os danos estavam feitos - nas duas décadas seguintes era de bom-tom, nos círculos da crítica parisience, considerar Camus , antes e após a sua morte, um filósofo para crianças do liceu". (idem, pgs. 161, 166 e 167).
Ainda a propósito desta polémica, houve quem tivesse falado do desprezo de Sartre por Camus (Bernard-Henry Levy, em O Século de Sartre, pgs. 442) :
Desprezo do universitário pelo autodidacta. Desprezo do francês pelo pied-noir que chega a França. Desprezo do grande, do aristocrata da cultura e herdeiro dos Schweitzer, pelo "pequeno rufia de Alger, muito divertido, muito mau rapaz" que brinca ao filósofo. O duque de Rohan manda a sua gente dar sova em Voltaire. Sartre manda Jeanson executar Camus.
Finalmente vou falar acerca das difíceis relações de Camus com o meio intelectual e cultural de Paris. Ou melhor, vou pôr de novo a falar Tony Judt, no seu sempre citado livro, O PESO DA RESPONSABILIDADE, pgs. 165/166:
Desde o início que Camus se sentira deslocado no meio intelectual francês, por uma razão caracteristicamente francesa - faltavam-lhe as credenciais educativas da maioria dos seus novos companheiros.
Ao contrário de quase todos eles, Camus não frequentara uma das escolas de elite parisienses, tendo estudado como bolseiro no liceu local de Argel. Não ingressara em seguida no Licée Henry IV ou no Licée Louis-Le-Grand para frequentar prestigiadas aulas prepatórias e depois entrar numa grande école. Não fizera o exame de admissão para ser aceite na École Normal Superiore, mas matriculara-se , em vez disso, na universidade em Argel. Não se submetera ao exame de "agrégation" nacional, que, em caso de aprovação, o habilitaria para o ensino no mais alto nível do sistema francês, inscrevendo-o numa classe restrita, voltada para si, de vultos académicos franceses (no caso de Camus, a admissão fora-lhe recusada por motivos médicos - a tuberculose impedira-o de um cargo titular no sistema educativo). Em suma: e ao contrário de Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir, Raymond Aron, Emmanuel Mounier, e a maioria dos seus amigos, Camus não pertencia à nata de Paris, e sentia-o.
Camus encontrava-se em grande desvantagem intelectual e psicológica na presença dos outros. Preferia a companhia dos desportistas, actores, ou homens com as suas origens sociais e o seu percurso educativo e como explicou numa passagem pela televisão em Maio de 1959, "Não sei porquê, mas na companhia de intelectuais tenho sempre a sensação de que devia estar a pedir desculpas por alguma coisa". Além do seu próprio sentido de inferioridade cultural (por três motivos - pelas suas origens sociais, o seu lugar de nascimento provinciano e a sua educação), Camus sofreu bastante às mãos dos críticos. Até Raymond Aron, que partilhava muito dos seus pontos de vista, rejeitava com desdém os seus argumentos.
Vou concluir este ponto e também a nossa conversa de hoje com mais uma transcrição das palavras de Michel Winock, o autor do já mencionado ensaio O Século dos Intelectuais, pgs. 417:
Camus pertence à aristocracia popular. Filho de um homem que trabalhava em adegas e de uma dona de casa iletrada, gosta de pessoas vulgares, de futebol e de bares onde se contam histórias com um sotaque de Bab-el-Oued. Ao mesmo tempo, não deixa de pôr uma certa elegância na sua maneira de estar e de falar; detesta as coisas grosseiras - que agradam à natureza burguesa de Sartre -, escreve num estilo tenso, um pouco solene, por vezes um pouco espartilhado. Detesta tudo o que esteja conotado com o populismo, a demagogia horroriza-o: não tem que descer ao povo porque faz parte dele.
Contrariamente aos que vivem de rendimentos e podem escrever sem se preocuparem com questões monetárias, ele inicia a sua carreira de escritor a pão e água...Teria podido, como os outros, encaixar-se, como professor, num curso universitário. Tem todos os requisitos: liceu, licenciatura, diploma do ensino superior, mas, quando chega à agregação, a Universidade fecha-lhe as portas: Não queremos cá tuberculosos! Que vão tossir para outro lado!
Vós que entrais, perdei toda a esperança.
Dante Alighieri (1265-1321), in A Divina Comédia (1317-1319)
CONVERSAS EM TEMPOS DE PANDEMIA E DE GUERRA
(NA MORTE DE JEAN-LOUIS TRINTIGNAN)
Face ao recente falecimento do actor francês, Jean-Louis Trintignan (1930-2022), os dois amigos resolveram homenageá-lo, revendo alguns dos seus filmes e fazendo incidir a conversa de hoje em dois dos que consideram ser os seus melhores trabalhos - Ultrapassagem (1962), de Dino Risi (1916-2008), e A MInha Noite em Casa de Maud (1969), de Eric Rohmer (1920-2010).
ERNESTO LIMA VITORINO: Se me permites, começo eu a falar e vou fazê-lo visando Ultrapassagem, realizado em 1962, e concluirei a minha intervenção contando duas anedotas verídicas a propósito do mesmo filme. Mas ainda antes disso, gostava de deixar aqui uma pequena nota. Alguém afirmou num jornal deste país que "personagem" é um substantivo feminino. Não é verdade. Todos os dicionários em papel e online registam esse vocábulo como sendo dos dois géneros. A única (e estranha) excepção (que confirma a regra) é o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora. E se houvesse alguma dúvida, traria (e trago) à colação o grande Eça de Queirós, o qual, na sua obra-prima, Os Maias, (Círculo de Leitores, 7ª. Edição, Abril de 1982) escreveu textualmente, pgs. 129, o seguinte: "(...) Foi em Coimbra, nos Paços de Celas, que Baptista começou a ser um personagem: Afonso correspondia-se com ele de Santa Olávia. (...)"
Posto isto passarei a abordar Ultrapassagem. Direi, para começar, que o filme é um clássico road movie e, ao mesmo tempo, uma versão moderna de D. Quixote de la Mancha, o célebre romance canónico da autoria do espanhol, Miguel de Cervantes (1547-1616), e publicado pela primeira vez em 1605. Neste contexto e desde logo, não foi inocente ou aleatória a escolha dos actores para o desempenho dos papéis das duas figuras principais da película, Bruno Cortona e Roberto Mariani - Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignan, respectivamente. O primeiro, tal como D. Quixote, era alto e magro, e o segundo, à imagem de Sancho Pança, era para o baixo e um pouco atarracado. A própria personalidade de cada um dos dois intérpretes coadunava-se bem com as das duas personagens criadas pelo génio de Miguel de Cervantes - Gassman era um comediante extrovertido, alegre, folgazão, divertido, comunicativo, ao passo que Trintignan, pelo contrário, era reservado, recatado, sério, tímido, retraído. Os inúmeros papéis que ambos encarnaram no cinema, ao longo das suas longas carreiras, provam à saciedade tais traços dos seus caracteres.
Voltando ao filme, o que este nos mostra ou relata é uma viagem quase alucinante, e sem destino certo, de dois homens, num potente automóvel desportivo, aparentemente pelas estradas de Roma e da Toscânia, e que é a reprodução, adaptada aos nossos tempos, das peregrinações de D. Quixote e Sancho Pança. Ou seja, um périplo repleto de incidentes e peripécias (agradáveis e desagradáveis) e em que Bruno nos exibe as suas frequentes loucuras e Roberto se lhe opõe com o seu costumado bom senso e sentido prático da vida. Logo no começo da odisseia, Roberto diz para com os seus botões: Estou nas mãos de um louco! A dona do restaurante, onde fazem uma pausa para o almoço, e a quem Bruno dirige, por palavras e com as mãos, brincadeiras um tanto atrevidas, diz dele: Que doido...Mas é simpático! O filme transborda das loucuras de Bruno em contraste com a sensatez permanente de Roberto. Lá está: o Cavaleiro da Triste Figura versus o seu escudeiro Sancho Pança.
Para os que, tal como aparentemente Dino Risi, acreditam na "força do destino", essa força está bem patente na forma como Roberto, estudante universitário, tenta em variadíssimas ocasiões e por todos os meios, livrar-se de Bruno (um quarentão, nitidamente preocupado com o envelhecimento e no presente sem profissão, mas que no passado já teve várias ocupações) e regressar à pacatez do seu quarto (de um apartamento próprio da classe média urbana), onde se preparava tranquilamente para o exame de Direito Administrativo e de onde foi literalmente arrancado por Bruno. De ínício com um convite apenas para uma bebida, no bar mais próximo, e que, mal entram no carro, zás, se transforma em convite para almoçar e depois acaba por ser uma interminável e trágica viagem de automóvel para Roberto. De todas as vezes que Roberto encetava tais tentativas de fuga, era sempre contrariado por Bruno e irremediavelmente convencido a retomar o seu lugar (do morto) na viatura e prosseguir a jornada. Estava escrito nos astros: iria ser, para Roberto, uma viagem sem regresso, apesar dos seus tremendos e persistentes esforços em sentido inverso.
As aventuras dos dois amigos têm como pano de fundo a Itália e os italianos, em pleno milagre económico desse país, milagre esse que se seguiu ao final da Segunda Guerra Mundial e se acentuou mais particularmente a partir dos anos cinquenta. No filme, e se calhar de igual forma na vida real, todos respiravam optimismo. Todos pareciam muito felizes e contentes, e todos pareciam viver uma espécie de la dolce vita, porventura replicando, com alguma ironia e muito sarcasmo, a película, também italiana, com esse mesmo título, de Federico Fellini (1920-1993), e lançada dois anos antes. Os restaurantes e as esplanadas regurgitavam de pessoas em alegre convívio, e nas praias e no campo acontecia o mesmo. Tudo ao som de temas musicais populares, que estavam na moda, que enchiam os ouvidos de toda a gente, que todos cantarolavam (na Itália e no resto do mundo ocidental) e que se dançavam em toda a parte. O twist, deliciosamente executado por uma banda, em que avultam os acordes de duas concertinas, e deliciosamente dançado por um grupo de camponesas e camponeses de todas as idades, num genuíno cenário rural, é um pormenor dos mais impressivos e inesquecíveis do filme, um pormenor que nenhuma outra arte consegue captar e oferecer tal como o faz o Cinema. Um achado!
De volta às proezas de Bruno e Roberto, este último, à semelhança do seu "émulo" Sancho Pança, às tantas e sobretudo quando iniciaram a viagem de regresso, deixou de contrariar Bruno e passou mesmo a imitá-lo e a secundá-lo nas suas diabruras, incentivando-o nomeadamente a acelerar cada vez mais o automóvel e a fazer manobras cada vez mais perigosas. Mesmo a mais perigosa de todas as manobras - a ultrapassagem numa curva - seria também instigada por Roberto e o seu destino funesto acabaria por se cumprir justamente numa fatídica ultrapassagem.
Um filme que não tem propriamente uma história e que tem um desfecho trágico. Um desfecho que acaba por dar um certo sentido, ainda que absurdo, a essa mesma ausência de história. Ao contrário do que acontece no final da obra-prima de Miguel de Cervantes, em que, dos dois protagonistas, quem morre é o D. Quixote, no filme quem perde a vida é o personagem correspondente a Sancho Pança, ou seja, Roberto Mariani.
Agora dou-te a palavra, meu caro amigo.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: E as duas anedotas que prometeste contar a propósito do filme?
ERNESTO LIMA VITORINO: Ah, tens razão, pá. Já me ia esquecendo das anedotas. Aqui vai a primeira:
A cena passou-se em meados dos anos sessenta do século passado. O filme, Ultrapassagem, acabara de ser estreado, na minha cidade (salvo seja), e, ao entrar, na tarde do dia seguinte, no cartório do notário, este atirou-me de chofre as seguintes perguntas:
- Porquê aquela morte final de Roberto? Porquê? Qual seria a intenção do realizador com esse desfecho tão trágico?
Confesso que hesitei um pouco na resposta, mas, com algumas cautelas, lá lhe fui dizendo que, num filme sem história, só um desfecho como aquele talvez pudesse dar algum sentido a essa ausência de história, embora um sentido quiçá absurdo. Nisto interveio um advogado que estava ao pé de mim:
- Não senhor. O que o realizador quis dizer é que não se devem fazer ultrapassagens nas curvas e que quem as faz, como acontece no filme, arrisca-se a ser severamente penalizado...
Comentário do tabelião: Bom, mas isso todos nós já sabemos. Aliás, já vem no Código da Estrada. Não valia a pena fazer um filme de quase duas horas de duração, só para dizer isso mesmo...
A segunda anedota é mais curta, tem quatro palavras e prende-se com o título que o mesma obra cinematográfica recebeu no Brasil. Sabes que título é? Ei-lo: Aquele Que Sabe Viver. Neste caso é desnecessário fazer qualquer comentário. Sim, Aquele Que Sabe Viver. Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Agora sou eu a falar sobre o segundo filme, A Minha Noite em Casa de Maud.
Trata-se de uma película da autoria de um católico, interpretada por dois católicos e dirigida, quase que exclusivamente, aos verdadeiros católicos. Vós (os não-católicos e ateus) que entrais, perdei toda a esperança.
Quando Jean-Louis (sim, o nome do personagem é igual ao nome do intérprete) chega à casa de Maud, onde um nevão o obriga a passar a noite (a tal noite em casa de Maud), já ele tinha visto pela primeira vez Françoise, numa missa, e dissera a seguir para consigo próprio estas palavras marcantes: Naquele dia, segunda, dia 21 de Dezembro, veio-me a ideia, brusca e precisa, de que Françoise seria minha mulher. Isto quer dizer que Jean-Louis, ao entrar na casa de Maud, já estava apaixonado por Françoise e já tinha assumido para consigo próprio um compromisso relativamente a essa jovem mulher. Um compromisso de casar com ela. É preciso ter muita atenção neste ponto crucial do filme: um compromisso de um católico totalmente praticante é um compromisso muito sério. E se esse compromisso tem em vista o matrimónio, mais sério se torna ainda. E não é só isso: Jean-Louis, além de católico praticante, e por ser católico praticante, é um homem que busca a máxima coerência com os seus princípios religiosos, nas suas acções, sejam elas quais forem, mas sobretudo nas acções que digam respeito às relações entre homem e mulher. Sobretudo nas acções que contendam com o sacramento do matrimónio, um dos sacramentos mais importantes da doutrina católica e no qual se centra unicamente todo o filme. É Jean-Louis que diz:
Um verdadeiro cristão devia manter-se casto até ao casamento.
Não acredito que haja amor sem reciprocidade. Aliás, é isso que me leva a crer numa certa predestinação.
Quando amamos realmente uma rapariga, não nos apetece dormir com outra.
Atentemos ainda neste diálogo, que vai no mesmo sentido:
MAUD: Se encontrasse hoje a rapariga que procura, casava-se imediatamente e jurava-lhe fidelidade eterna?
JEAN-LOUIS: Sem dúvida.
MAUD: E se ela o traísse?
JEAN-LOUIS: Se me amar, não me trairá.
MAUD: O amor não é eterno.
JEAN-LOUIS: Para mim, é. Se há coisa que não compreendo é a infidelidade. Se escolhi uma esposa é porque a amo com o amor que resiste ao tempo. Se deixasse de a amar, desprezar-me-ia.
MAUD: Não admite o divórcio?
JEAN-LOUIS: Não.
Perante esta idiossincrasia religiosa e também moral, extrema, não surpreende o comportamento de Jean-Louis em casa de Maud. Não surpreende que ele não tenha sequer tocado em Maud, apesar de ter dormido com ela, toda a noite, na mesma cama. Tal noite foi um rotundo fracasso para quem, como Maud ou o seu amigo Vidal, segue a filosofia do amor livre, o amor inconsequente e sem qualquer responsabilidade, muito em voga, aliás, nos anos sessenta do século XX. Para Jean-Louis, em contrapartida, a mesma noite foi um extraordinário sucesso. Foi a vitória da coerência e da responsabilidade. Foi a vitória sobre os tormentos da carne. Sou a favor da privação, da abstinência, sou contra a supressão da abstinência - é mais uma afirmação significativa de Jean-Louis. De resto, Jean-Louis iria repetir pouco depois o seu comportamento de castidade, perante aquela que em breve iria ser sua esposa, Françoise, quando, curiosamente de novo retido pela neve, dorme com esta, sozinhos na mesma casa e em quartos separados mas contíguos.
Jean-Louis e Françoise estão lado a lado, na igreja, assistindo à missa, quando e ainda antes do seu casamento, ouvem atentamente do padre, em homilia, as seguintes palavras que são porventura o corolário, a síntese da doutrina que Eric Rohmer pretende transmitir aos espectadores, sobretudo aos espectadores católicos: A vida cristã não é uma moral, é uma vida. E essa vida é uma aventura, a mais bela de todas, a aventura da santidade. Estou certo de que é preciso ser louco para ser santo e que muitos dos que foram canonizados recearam essa ligação, essa progressão que os levou à santidade. Mas, para além dos nossos medos, devemos ter uma fé inabalável no Deus de Jesus Cristo, uma fé que transcende as esperanças mais ilusórias dos homens e que nos recorda, simplesmente, que Deus nos ama e que esse homem, esse santo que somos convocados a ser, é um homem que é dominado por uma certa dificuldade de ser, de viver a sua existência de homem, com as suas paixões, as suas fraquezas, as suas ternuras, mas também de viver enquanto discípulo de Jesus Cristo.
As mesmas palavras são também ilustradas pelas imagens finais do filme, imagens que nos mostram Jean-Louis e Françoise, já casados, igualmente lado a lado e levando no meio o seu pequeno filho, fruto do seu amor sincero, a caminho do mar, do horizonte, ou seja, a caminho da esperança. Para trás, e em total contraste, ficam os ateus e os partidários do amor livre, Maud e Vidal, ambos vivendo ligações amorosas incertas ou mesmo falhadas. (Continua)
ATÉ QUANDO A IMPU(TI)NIDADE?
A guerra de agressão da Rússia contra o heróico povo da Ucrânia é um acto de barbárie dos tempos modernos e, por isso, um acto gravemente ofensivo dos princípios que governam os povos civilizados. Um acto gravemente ofensivo do direito internacional e da Carta das Nações Unidas. Um acto que deve merecer, e já mereceu, dos países ocidentais a total condenação. Um acto ao qual o resto do Mundo, sobretudo os países ocidentais, deve pôr termo por todos os meios. A Ucrânia é cultural e politicamente uma aliada nossa e, em consequência, merece todo o nosso apoio. As sanções económicas, financeiras e culturais contra a Rússia e os seus oligarcas podem ser um desses meios. Incrementar (e acentuar) essas sanções enfraquece a Rússia e Putin e reforça a Ucrânia e Zelensky. Putin é um homem isolado e moralmente derrotado. Um aventureiro. Um proscrito. Um marginal. Pode ser que esta aventura belicista ponha fim definitivo à sua infame carreira política, a exemplo do que aconteceu com Napoleão Bonaparte e Adolfo Hitler, entre outros autocratas. Oxalá.
CONVERSAS EM TEMPOS DE PANDEMIA E DE GUERRA
(NINGUÉM ESCREVE AO CRONISTA)
(PRIMEIRO ACTO)
Os dois amigos continuam a encontrar-se regularmente para os seus diálogos. A conversa de hoje tem lugar na esplanada de uma pastelaria, localizada em mais uma cidade do Sul do país e onde foram beber um café. Tinham acabado de assistir à representação da peça de teatro, O Tio Vânia, da autoria do dramaturgo russo, o grande Anton Tchekhov (1860-1904), peça magnificamente encenada e interpretada por um grupo local amador. Haviam gostado da experiência.
ERNESTO LIMA VITORINO: Não sei se seguiste com alguma atenção as recentes investigações da Polícia Judiciária ao que se passa no nosso mundo do futebol?
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Sim, sim, li e ouvi alguma coisa, embora sem a atenção que provavelmente esses casos merecem. Decerto que sabes disso melhor do que eu.
ERNESTO LIMA VITORINO: Como é do teu conhecimento, eu também sou um pouco indiferente ao que acontece no meio futebolístico, mas essas investigações da Polícia Judiciária, particularmente as que respeitam às transferências milionárias de jogadores, despertaram o meu interesse. Pelos valores envolvidos, pelos clubes implicados e pelos personagens suspeitos. E essas mesmas transferências, no foco das investigações policiais, fizeram-me lembrar de um caso que me deixou intrigado. Foi em 2016 e tratava-se então da venda do ainda muito jovem jogador do Benfica, Renato Sanches, ao Bayern de Munique pela surpreendente soma de 35 milhões de euros.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: O quê? 35 milhões de euros por esse jogador que praticamente estava em inicío de carreira? Não, não me dei conta de tal negócio. Negócio que agora, vendo bem as coisas e mesmo à distância, me deixa estupefacto, perplexo, banzado.
ERNESTO LIMA VITORINO: Compreendo as tuas palavras. Não há dúvida. Foi um negócio estranho. Foi a transferência mais cara de um jogador português para o futebol estrangeiro, superando até mesmo as transferências de futebolistas como Fábio Coentrão e Ricardo Carvalho. E tratava-se no entanto da transferência de um jogador que não passava então de uma vaga promessa. Promessa que, como veremos mais adiante, não era mais do que isso mesmo - uma vaga promessa. Ou seja, uma promessa que pura e simplesmente se não cumpriu. E o mesmo negócio foi tanto mais estranho quanto é certo que Renato Sanches, mal chegou ao Bayern de Munique, zás, foi logo plantado no banco de suplentes, não tendo sido posto jamais a jogar na primeira linha. A ponto de a páginas tantas o mesmo atleta se ter queixado, através dos jornais desportivos, do seu sub-aproveitamento no Bayern de Munique. Pudera!
Mais e mais estranho ainda: em Agosto de 2017, como que em resposta às queixas de Renato Sanches, o Bayern de Munique tirou-o do banco de suplentes. Para quê? Para o pôr a jogar na primeira linha? Não. Que ideia! Apenas para o dar de empréstimo, até ao final da época, ao Swansea City, um clube inglês da segunda divisão. Repito: Renato Sanches, um jogador que custou 35 milhões de euros ao Bayern de Munique, foi dado de empréstimo, em Agosto de 2017, a um clube inglês da segunda divisão. Nesta equipa Renato Sanches continuou a fazer publicamente as suas queixas, agora de estar a ser desperdiçado num clube sem nenhuma categoria para o albergar. Pudera!
E não se ficam por aqui as atribulações de Renato Sanches. Em Agosto de 2019 passou para o clube francês, Lille, onde ainda continua, no mais completo anonimato, e onde voltou a oferecer-se, sempre através dos jornais desportivos, para voos mais altos, quer dizer, para clubes com outra dimensão. Pudera!
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: É realmente tudo muito estranho. Não deixo de reconhecer.
ERNESTO LIMA VITORINO: Sim, tudo muito estranho. 35 milhões de euros por um jogador que, pelas suas actuações na Selecção Portuguesa, mostrou ser apenas e unicamente um especialista em devolver as bolas que lhe passam e, por conseguinte, um jogador sem chama, sem garra, sem rasgo, sem ambição, sem imaginação, sem iniciativa, sem inteligência, sem faísca, sem fulgor, sem ardor, sem ousadia. Em resumo: um atleta obviamente destituído de qualidades para fazer parte da equipa portuguesa de futebol mas que tem vindo a contar com a complacência e a confiança inexplicáveis do seleccionador Fernando Santos. Ora o Bayern de Munique é que topou Renato Sanches desde o princípio. Eis tudo.
Voltando ao início e para concluir este assunto, a transferência de Renato Sanches pelo valor de 35 milhões de euros, por ser uma transferência no mínimo estranha, tem de merecer melhor atenção da Polícia Judiciária e, se possível, a mesma Polícia deve contar agora com a colaboração de Rui Pinto, o mago das pesquisas online que denunciou publicamente várias negociatas internacionais, em particular as negociatas no mundo do futebol. Eis tudo.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Disseste há pouco que Renato Sanches é um futebolista português, não foi? Tenho uma dúvida. Português de nascimento ou português por naturalização?
ERNESTO LIMA VITORINO: De nascimento, meu caro amigo. Renato Sanches nasceu e cresceu na zona da Amadora, distrito de Lisboa.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Não percebo. Se Renato Sanches nasceu e cresceu em Portugal como é que se explica que ele se expresse mal na língua portuguesa, tenha sotaque africano e o som oral das palavras e não o som nasalado das ditas, como acontece em princípio com as pessoas nascidas e criadas em Portugal?
ERNESTO LIMA VITORINO: É muito simples, caríssimo. Renato Sanches nasceu de facto em Portugal, mas no seio de família africana (pai são-tomense e mãe cabo-verdiana, a par de outros parentes também africanos) e conviveu na rua e na escola com miúdos e graúdos cabo-verdianos ou descendentes de cabo-verdianos, dos milhares residentes na mesma zona. Digamos, para simplificar as coisas, que Renato Sanches recebeu directamente desse ambiente todas as características da fala africana, no caso, do dialecto crioulo cabo-verdiano, isto é, o uso incorrecto do idioma luso, o sotaque africano e o som oral das palavras. (Sim, sotaque africano e o som oral das palavras, quer a elite cabo-verdiana goste, quer não goste). Foi como se Renato Sanches tivesse nascido e crescido em Cabo Verde e não em Portugal. São características linguísticas que se transmitem, sobretudo em situações de endogenia, como é o caso, de geração para geração, nomeadamente através do sotaque e do som das palavras (oral ou nasalado). As mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Eis tudo.
Como veremos mais adiante e mais em pormenor, o dialecto crioulo cabo-verdiano afecta negativamente o uso do idioma português e constitui um dos grandes constrangimentos linguísticos e culturais com que os cabo-verdianos estão confrontados
Um outro exemplo, em parte semelhante e obviamente menos grave, é o caso dos negros norte-americanos. Existe um convencimento mais ou menos generalizado, sobretudo nos Estados Unidos, segundo o qual os negros norte-americanos, ou afro-americanos, têm pronúncia da língua inglesa diferente da pronúncia dos brancos norte-americanos ou caucasianos. Wrong. Errado. Não, não se trata da pronúncia. Nem sequer do sotaque. A fala inglesa dos afro-americanos pode ter as suas peculiaridades próprias, em termos gramaticais e de pronúncia, mas o que fundamentalmente, basicamente, nuclearmente caracteriza essa mesma fala (a dos negros norte-americanos) é que estes (os afro-americanos) se expressam com o som oral (sublinho: som oral) das palavras, som esse levado da África através dos escravos negros de 1619 em diante, e não com o acentuado som nasalado, ou mesmo nasal, dos vocábulos proferidos pelos brancos do mesmo país e transportado da Inglaterra, a partir do século XVII, pelos colonos britânicos. E tais particularidades (som nasalado ou oral dos vocábulos) são heranças linguísticas que se recebem de pais para filhos ou de geração para geração, numa espécie de circuito social fechado, principalmente em sociedades, como a dos Estados Unidos, em que a interpenetração racial é praticamente nula. (Quem quiser comprovar o som oral das palavras proferidas pelos afro-americanos pode fazê-lo facilmente escutando atentamente as actrizes e os actores (negros) de cinema e de televisão dos Estados Unidos, ou ainda talvez mais facilmente, ouvindo o actual Secretário de Defesa do mesmo país, o general negro, Lloyd Austin, ou Kamala Harris, vice-presidente dos EUA, ou até mesmo o ex-Presidente Barack Obama e a esposa Michelle). Fenómeno linguístico idêntico ao que se passa na América do Norte ocorre na África do Sul, entre outros exemplos que aqui se poderiam apresentar, em que os negros falam com o som oral das palavras e os brancos com o som nasalado dos vocábulos. Mutatis mutandis, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Eis tudo.
De volta às singularidades idiomáticas dos afrodescendentes em Portugal, vamos dar o exemplo de uma situação similar à da de Renato Sanches e que tem a ver com uma outra figura do futebol internacional. Estamos a falar de Nani (Luís Carlos Almeida da Cunha) ex-jogador do Sporting e, por causa dos seus 35 anos de idade, hoje praticamente em fim de carreira. Nani nasceu e cresceu também na zona da Amadora, Portugal, no seio de família africana (pai e mãe cabo-verdianos). Por isso, fala com dificuldade a língua portuguesa, tem sotaque africano, o som oral das palavras e não o som nasalado dos vocábulos próprio dos falantes directamente originários da língua portuguesa.
Um caso contrário, porque nascido e criado em Cabo Verde e de ascendência completamente cabo-verdiana, é o de Rolando (Rolando Jorge Pires da Fonseca) também futebolista internacional e de igual forma no ocaso do seu percurso desportivo, actualmente a actuar no Sporting de Braga. Em termos de características linguísticas, Rolando segue a regra geral da esmagadora maioria dos cabo-verdianos: não articula bem a língua portuguesa, tem sotaque africano e o som oral das palavras que ele profere. Em Portugal ou em Cabo Verde. Lá está: as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos. Eis tudo.
Falemos agora de figuras também conhecidas, nadas e criadas em África, mas no seio de famílias portuguesas originariamente falantes do idioma luso e, por conseguinte, com expressão correcta da mesma língua, sotaque do português europeu e o som nasalado das palavras por si articuladas. Tais individualidades são as seguintes: José Rodrigues dos Santos, o jornalista e pivot da RTP, o Almirante Henrique Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada e ex-Coordenador da Task Force para o Plano de vacinação contra a Covid-19 em Portugal (ambos nascidos em Moçambique) e o Engenheiro António Costa Silva, actual ministro da Economia (nascido em Angola). Mutatis mutandis, as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos. Eis tudo.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Disseste há pouco que o dialecto crioulo cabo-verdiano afecta negativamente o uso do idioma luso e constitui um dos grandes constrangimentos linguísticos e culturais que os cabo-verdianos enfrentam. Podes alargar um pouco esse tema?
ERNESTO LIMA VITORINO: Claro que sim. Vejamos.
O dialecto crioulo cabo-verdiano é uma das sete grandes tragédias de Cabo Verde, ponto finaL [As restantes seis grandes tragédias são as que se seguem e a ordem não é arbitrária: a seca cíclica (neste momento o país, que ainda está longe de se recompor da crise pandémica, é devastado inexoravelmente por uma seca severa ou mesmo extrema), o subdesenvolvimento, a pobreza, a criminalidade (em termos de criminalidade, Cabo Verde é um Brasilinho), a ignorância ou incultura, e a descontinuidade territorial ou insularidade múltipla]. Voltando ao crioulo cabo-verdiano, é necessário realçar desde já que esse dialecto é o grande inimigo da língua portuguesa. Sim, que não haja dúvidas: um inimigo visceral da língua portuguesa. Literalmente: o dialecto crioulo cabo-verdiano mata a língua portuguesa. E porquê? Primeiro, porque o dialecto crioulo é a língua portuguesa deturpada e simplificada. Segundo, porque o crioulo é o dialecto que os cabo-verdianos recebem no berço e continuam, no país ou no estrangeiro, a falar pela vida fora em concorrência desleal com a língua portuguesa. E terceiro, porque quando os cabo-verdianos chegam à escola, (e na escola, sobretudo nas escolas públicas, que são as predominantes, seja qual for o grau de ensino, os professores e as professoras falam correntemente o dialecto crioulo, até mesmo quando paradoxalmente ensinam a lingua portuguesa), já levam o dialecto crioulo no seu imaginário e o idioma luso é inconscientemente relegado para um plano linguístico muito secundário, tornando-se assim algo de parecido com uma língua estrangeira ou mesmo uma língua estrangeira em todo o sentido da expressão língua estrangeira.
Nos anos sessenta do século passado, quando a luta pela independência das então colónias portuguesas de Angola, Moçambique e Guiné estava no auge, os intelectuais nacionalistas cabo-verdianos realçavam, sem disfarce e com orgulho, o facto de os colonos (ou colonialistas) portugueses não terem conseguido impor a língua portuguesa em Cabo Verde (ao contrário do sucedido no Brasil), dando deste modo o idioma luso lugar ao dialecto crioulo. Ou por ignorância ou por má-fé, esses nativistas cabo-verdianos (como agora são designados) silenciavam convenientemente os casos dos restantes países da América Latina, de Cuba e da República Dominicana (diversamente do seu vizinho Haiti, país económica e culturalmente muito menos desenvolvido e em que o dialecto crioulo local massacra impiedosamente a língua francesa) onde, e ainda bem, triunfou a língua espanhola tal como, no que toca ao português, aconteceu no Brasil e também em Angola e em grande medida em Moçambique. Falando especificamente do caso de Angola, sem qualquer sombra de ironia e sem qualquer desprimor para os restantes falantes da língua portuguesa, comove-me até às lágrimas a forma soberba, genuína e desassombrada como os angolanos se expressam no idioma de Camões e de Pessoa, seja no seu país, seja fora dele. Um encontro de angolanos em Lisboa é uma festa da língua portuguesa.
Os países latino-americanos, Cuba, República Dominicana, Angola e Moçambique foram abençoados com a adopção de línguas cultas, de valor científico e literário (o espanhol e o português) e que viriam mais tarde a ter projecção internacional, ao passo que os cabo-verdianos ficaram, se calhar orgulhosamente, agarrados a um dialecto de expressão unicamente oral, de uso localizado e desprovido de qualquer valor científico e literário. Contrariamente ao que por aí se pensa, se escreve e se diz, o problema linguístico e cultural cabo-verdiano nada tem a ver com as variantes A, B ou C da língua portuguesa. Quem dera aos cabo-verdianos que assim fosse. O problema linguístico e cultural cabo-verdiano é outro e bem mais grave. O problema linguístico e cultural cabo-verdiano é os cabo-verdianos não terem nenhuma variante da língua portuguesa. O problema linguístico e cultural cabo-verdiano é os cabo-verdianos só terem como língua dita materna e geral um dialecto sem projecção internacional (aliás, como todos os dialectos) e que, por isso, só os cabo-verdianos conhecem e usam. Enfim, o problema linguístico e cultural cabo-verdiano é que o idioma luso que os portugueses deixaram como herança (sim, como herança, quer se queira, quer não) tem vindo a ser atrozmente malbaratado pelos cabo-verdianos em benefício do dialecto crioulo. E tudo isto não deixa de ser uma grande tragédia. Para Cabo Verde e para os cabo-verdianos. Eis tudo.
(Continua)
CARLOS MOEDAS PARA PEDRO MARQUES LOPES:
Obrigadinho, ó Lopes. A forma politicamente (in)correcta como me (des)qualificaste na tua crónica publicada na revista Visão, e amplamente divulgada na Internet, foi um valioso contributo, da tua parte, para os mais de oitenta mil votos por mim alcançados nas eleições autárquicas e que me deram a presidência da Câmara Municipal de Lisboa. Com detractores como tu, ninguém precisa de protectores. Rima e é verdade.
CONVERSAS EM TEMPOS DE PANDEMIA
(DEUS NÃO DORME)
(TERCEIRO ACTO)
Os dois amigos continuam a ter as suas conversas periódicas. Desta vez, o diálogo acontece num restaurante situado na pequena cidade perto da qual residem e onde estão a almoçar. O subtítulo destas conversas também podia ser Reflexões à Mesa de um Restaurante.
ERNESTO LIMA VITORINO : Este nosso encontro está a coincidir com a crise política que tomou conta do país. Mas antes de entrarmos nos inevitáveis comentários à situação política actual, gostava de dizer qualquer coisa sobre a pandemia. Tal como eu afirmei, há um tempo atrás, a pandemia continua a grassar entre nós e lá fora. A Covid-19 não deu nem dá tréguas. Os indicadores fatídicos têm vindo a subir incessantemente. Para nosso azar, em Portugal a vacinação da terceira dose não corre da melhor maneira. Antes pelo contrário: anda aos ziguezagues. Anda literalmente aos trambolhões. Por isso, volto a insistir que a melhor coisa a fazer é não descurar as conhecidas medidas profilácticas - lavagem frequente das mãos, uso de máscaras em recintos públicos, distanciamento físico e confinamento sempre que possível. Resumindo: tudo como dantes...Mas voltando à actualidade política, repito que este nosso almoço coincide com a crise geral do país.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA : É verdade. Até parece que é de propósito. Mas desde já te digo uma coisa. Para mim, as sementes da crise começaram a germinar, e de forma bastante rápida, na noite do dia 26 de Setembro. Ou seja, a partir do momento em que se conheceram em definitivo os resultados da eleições autárquicas. Tais resultados podem ser resumidos como se segue: uma vitória do Partido Socialista, com significativas derrotas; uma derrota do Partido Social Democrata, com significativas vitórias; e uma estrondosa derrota em toda a linha da extrema-esquerda, isto é, do Partido Comunista e do Bloco de (Extrema-)Esquerda.
ERNESTO LIMA VITORINO: Estou de acordo contigo. O Partido Comunista e o Bloco de (Extrema-)Esquerda fizeram as contas, na noite das autárquicas, e chegaram a esta triste conclusão: os seis anos da "geringonça" tinham sido um péssimo negócio para as duas forças políticas. Sim, um desastroso negócio para o Partido Comunista e para o Bloco de (Extrema-)Esquerda. Eleitoralmente não ganharam nada. Pelo contrário: só perderam. E vou mesmo mais longe: ao longo desses intermináveis seis anos, o verdadeiro ganhador da "geringonça" foi António Costa. Ora este, por via das manobras tácticas, de que é um exímio especialista, conseguiu a sobrevivência política, desde logo em 2015, e depois de uma derrota eleitoral, ao fazer acordos com a extrema-esquerda que lhe permitiram formar governo, deixando na oposição a ver navios o PSD de Pedro Passos Coelho, o verdadeiro vencedor das eleições. (É caso para dizer que António Costa, para sobreviver politicamente, é um homem capaz de tudo, até mesmo de uma boa acção). E no que diz respeito ao conteúdo dos acordos com o Partido Comunista e com o Bloco de (Extrema-)Esquerda, António Costa limitou-se a cumprir os mínimos, quer dizer, ateve-se unicamente às pequenas devoluções e reversões, o que deixou ao princípio os seus parceiros muito felizes e contentes. Estes não se aperceberam de que António Costa se tinha limitado a oferecer um bodo aos pobres. Quanto ao resto dos acordos, o líder do PS ou pura e simplesmente os ignorou, ou então permitiu que o seu ministro das Finanças, Mário Centeno, com os olhos postos em Bruxelas, cativasse as verbas necessárias ao cumprimento da parte substancial dos mesmos acordos e que, na sua grande maioria, tinha a ver com os investimentos públicos. Como se sabe, por falta de investimentos, inúmeros serviços públicos ficaram de pantanas. E digo-te mais: por causa da sua política errática e ambígua, Antóno Costa ficou de bem com todos. Com os seus parceiros de coligação, com os sindicatos, com as associações patronais, com a União Europeia, e até mesmo com os portugueses. E para compor o ramalhete, sabes o que é que Antóinio Costa também fazia? Pois bem, deixava no ar (ou pelo menos não desmentia os rumores que circulavam a esse respeito) a possibilidade de os seus parceiros virem a fazer parte do Governo, coisa que, aos ouvidos de Catarina Martins e das gémeas Mortágua, soava como música celestial, tão embevecidas estavam perante tal hipótese. Hipótese alimentada, de resto, pelas quase certezas que dava o patriarca do Bloco de (Extrema-)Esquerda, Francisco Louçã, em frequentes intervenções públicas, de que Mariana Mortágua, mais dia menos dia, seria ministra das Finanças. Coitadinhas!
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Pegando nas tuas palavras, eu diria que tudo o que acabaste de expor foi um lindo sonho dos membros da "geringonça", e esse sonho transformou-se em pesadelo na noite de 26 de Setembro. E foi assim que um mês depois, isto é, na noite de 27 de Outubro, o Partido Comunista e o Bloco de (Extrema-)Esquerda disseram basta! E não disseram só isso. Acrescentaram que já tinham engolido de mais nas mãos de António Costa. Por isso chumbaram, nessa mesma noite fatal de 27 de Outubro, a proposta do Orçamento do Estado apresentada na Assembleia da República pelo Governo de António Costa. Numa palavra: os dois partidos da extrema-esquerda puseram termo aos acordos que permitiram a sobrevivência do Governo socialista e de António Costa durante seis longos anos. Deus não dorme, e Pedro Passos Coelho estava vingado.
ERNESTO LIMA VITORINO : E, no entanto, permite-me o seguinte desabafo: foi deplorável ver, em pleno século XXI, num país integrado na OCDE, na União Europeia, na Zona Euro, na NATO, um partido essencialmente social-democrata, para governar o país, ter de se mancomunar com dois partidos da extrema-esquerda que nem sequer chegam a representar 10% do eleitorado. Partidos da extrema-esquerda que são visceralmente contra a iniciativa privada (em qualquer ramo de actividade) conta a União Europeia, contra a Zona Euro, contra o Euro, e contra a NATO. Foi uma vergonha perante a Europa e perante o Mundo.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA : Tens razão, e, mesmo assim, parece que o vírus da doença que nos conduziu a tal tragédia persiste ainda entre nós. E não é que um dos arquitectos principais da "geringonça" , Pedro Nuno Santos, já veio publicamente declarar o que nenhum dos seus confrades teve até agora (depois da queda do Governo) a coragem e a ousadia de exteriorizar? E por acaso sabes o que esse guru da extrema-esquerda socialista (sim, infelizmente ela existe) nos veio comunicar? Simplesmente isto: que a "geringonça" não foi um parêntesis e que a experiência é para continuar. Ah, sim? A experiência é para continuar? Oh meu Deus! Que mais nos irá acontecer? E eu que pensava que o chumbo da proposta do OE no Parlamento iria servir de vacina (com todas as doses) contra futuras veleidades de experiências como a "geringonça". E eu que pensava que tal chumbo era razão mais do que suficiente para o PS perder a confiança nos seus ex-parceiros de coligação. E eu que pensava que a "geringonça" estava morta e enterrada. E eu que pensava, tal como Manuel Alegre disse, que ao PS não restava mais nada senão fazer o luto da "geringonça".
ERNESTO LIMA VITORINO : E, já agora, também é preciso deixar bem claro que, ao longo dos seis anos em que o país esteve sob os ditames da "geringonça", o Presidente da República não se comportou com a prudência, o distanciamento e a imparcialidade que uma tal situação política aconselharia. E porquê? Porque, em nome da estabilidade política, e para ganhar o apoio eleitoral do Partido Socialista, ainda que tácito, Marcelo Rebelo de Sousa, num gesto desavisado, deu respaldo objectiva e subjectivamente a essa experiência política. O empenhamento do Presidente da República no apoio à "geringonça" foi tão forte que às tantas ele já se confundia com essa coligação. Às tantas, já se mostrava parte dessa coligação. E se não era assim, pelo menos parecia que era, e, como se sabe, em política o que parece, é. Por isso tudo, a derrota da (extrema-)esquerda nas autárquicas de 26 de Setembro foi também uma derrota para o Presidente da República. Sim, uma derrota para o Presidente da República. E daí o nervosismo de Marcelo Rebelo de Sousa no período que antecedeu a votação da proposta do OE na Assembleia da República. Desdobrou-se mais do que nunca em intervenções públicas, indignas do mais alto magistrado da Nação, ameaçando os partidos da extrema-esquerda, com eleições antecipadas, caso chumbassem a proposta do OE. No fundo ele sabia que as eleições antecipadas seriam algo que ele iria desencadear a contragosto e em oposição a si próprio. Em suma: tivemos e vamos continuar a ter nos tempos mais próximos um Presidente da República derrotado por se ter derrotado a si próprio e que em boa verdade deveria renunciar ao cargo por já não dispor de condições políticas para continuar a ser Chefe de Estado. Ou seja, faltam-lhe objectividade, imparcialidade e serenidade necessárias para arbitrar o jogo político, num momento tão delicado de crise aguda como aquele em que o país se encontra. Marcelo Rebelo de Sousa deixou de ser árbitro para ser parte interveniente no jogo político do país. Deixou de ser parte da solução para ser parte do problema. Como disse alguém, e bem, Marcelo Rebelo de Sousa somou crise à própria crise. Digo eu agora, alto e bom som: Marcelo Rebelo de Sousa foi e continua(rá) a ser o presidente no seu labirinto.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Eu disse há pouco que Pedro Passos Coelho estava vingado, não foi? Não, não estava, nem está, pelo menos totalmente. A vingança completa, essa, só será consumada com a derrota dos partidos da "geringonça" nas eleições legislativas do próximo dia 30 de Janeiro. Das duas uma: ou o PSD ganha as eleições com a maioria absoluta e governa sozinho, ou vence com maioria relativa e faz coligação com o Chega, o IL e o CDS e teremos uma "geringonça" de direita. E mesmo que o PSD eventualmente perca as eleições , os quatro partidos de direita poderão ter maioria no Parlamento com votos suficientes para dar suporte a um governo de direita. O PSD deve pôr de lado os complexos (de esquerda) e fazer no continente o que fez nos Açores, quer dizer, aliar-se à sua direita para formar uma "geringonça" de sinal contrário e assim fazer ao Partido Socialista, ao Partido Comunista e ao Bloco de (Extrema-)Esquerda aquilo que estes fizeram ao Partido Social Democrata em 2015. Isto é, formar maioria e derrotar a esquerda e a extrema-esquerda no Parlamento com todas as consequências políticas dai decorrentes. Então e só então é que Pedro Passos Coelho estará definitivamente vingado. Cá se fazem, cá se pagam. (Continua)
No octogésimo aniversário do falecimento do grande James Joyce (1882-1941).
Mais uma carta sua, esta datada de 3 de Abril de 1932 e dirigida, de Paris, ao então Presidente da Câmara Municipal de Florença.
Ilustre Presidente
Em primeiro lugar, peço-lhe desculpas por só lhe responder agora e ainda por cima desta forma ataviada e esmaecida, mas a sua carta, expedida de Londres, chegou-me às mãos com algum atraso e, em termos de caligrafia, não passo de um mero escrevinhador. Agradeço-lhe o seu gentil convite e, bem assim, a generosa oferta das despesas de viagem e tenho em grande conta a honra que o mesmo convite, vindo do primeiro cidadão de uma tal cidade, me confere.
Lamento muito não ser capaz de aceitar e ter de renunciar ao privilégio de falar perante o público simpático da capital da Toscânia. Infelizmente os fados que se curvaram sobre o meu berço privaram-me do dom da eloquência - um atributo de muitos dos meus compatriotas - e, em vez disso, deixaram-me "uma língua de lã numa boca tola". Apresento-lhe, por conseguinte, o meu pedido de desculpas.
Se me é permitido propor um outro nome, penso que o meu amigo, o poeta americano Ezra Pound, que traduziu para a língua inglesa as obras do grande escritor florentino Guido Cavalcanti, poderá substituir-me satisfatoriamente. Eis o seu endereço: Via Marsali,12, Rapallo, onde ele tem vivido nos últimos dez anos.
Nesta oportunidade apresento-lhe a si os meus sinceros agradecimentos, ao distinto reitor da real Universidade daí, e ao comité a que preside.
Peço-lhe, ilustre Presidente, que aceite a expressão do meu mais profundo respeito.
James Joyce
NOTAS: (1) A carta foi originalmente escrita em italiano, língua que James Joyce dominava na perfeição, e foi inserida, com a tradução em inglês, na obra Selected Letters of James Joyce, organizada por Richard Ellmann e publicada, em 1975, pela editora britânica Faber and Faber. A tradução para português (da nossa responsabilidade) teve como bases as referidas versões italiana e inglesa da mesma missiva. (2) Uma língua de lã numa boca tola (lingua di lana in bocca baggiana ou a woolen tongue in a foolish mouth), um trocadilho com a expressão lingua toscana in bocca romana (língua toscana numa boca romana) - que os italianos consideram a perfeição da sua língua. (3) James Joyce nunca dava entrevistas, e declinava sistematicamente todos os convites que lhe eram dirigidos para proferir palestras.
Citando e homenageando o grande Ernest Hemingway (1899-1961), no sexagésimo aniversário da sua morte:
A GERAÇÃO PERDIDA
"(...) Foi depois de termos regressado do Canadá - vivíamos nós então na Rue Notre-Dame-des-Champs e conservávamos ainda a amizade de Miss (Gertrude) Stein - que ela fez os seus comentários acerca da geração perdida. A certa altura, deu-se uma avaria na ignição do Ford Modelo T que ela então guiava. O rapaz que trabalhava na garagem e fora combatente no último ano da Guerra, ou não se mostrara competente ou não quis possivelmente desrespeitar a prioridade dos outros clientes ao consertar o Ford T de Miss Stein. De qualquer maneira, ele não havia sido sérieux e fora severamente repreendido pelo patron da garagem, mercê da queixa de Miss Stein. O patron dissera ao empregado:
- Vocês são todos uma génération perdue.
- É o que vocês são. É o que vocês são todos - sentenciou Miss Stein. - Todos vocês, os que andaram na Guerra. Não passam de uma geração perdida.
- Sério? - perguntei eu.
- Pois decerto - garantiu ela. - Não têm respeito por coisa alguma. Bebem até ficarem como mortos...
- O tal rapaz, o mecânico, estava bêbedo? - perguntei.
- Claro que não.
- Já me viu bêbedo, a mim?
- Não, mas os seus amigos, esses, embebedam-se.
- Eu também já me tenho embebedado. Mas nunca venho aqui nesse estado.
- Claro que não. Eu não lhe disse isso.
- Naturalmente o patron do rapaz é que estava bêbedo às onze da manhã - disse eu. - É por isso que ele se sai com frases tão pomposas.
- Não discuta comigo, Hemingway - tornou Miss Stein. - Não serve de nada. Vocês constituem uma geração perdida, como muito bem disse o dono da garagem. (...)"
In Paris é uma Festa (obra póstuma de1964), 1ª. Edição, na Livros do Brasil/Porto Editora, Outubro de 2014.
Citando e homenageando o grande Fiódor Dostoiévski (1821-1881) no bicentenário do seu nascimento:
A COABITAÇÃO FORÇADA
"(...) Os dias eram curtos, a corveia terminava cedo, todos regressavam ao anoitecer à prisão, e aí, se não fosse o trabalho pessoal que cada um arranjava, ficariam inactivos quase até ao Verão. Todavia, apenas um terço dos prisioneiros se entregavam a uma ocupação permanente; os outros mandriavam, flanavam pelas camaratas, insultavam-se, contavam mexericos e embriagavam-se, se dispunham de algum dinheiro. À noite, jogavam às cartas até à própria camisa, para evitar o aborrecimento e fugir à ociosidade, para matar o tempo. Compreendi imediatamente que, além da privação da liberdade e do trabalho forçado, os presos passavam ainda por outro suplício talvez não menos penoso: a coabitação forçada. A vida em comum existe, sem dúvida, noutras partes, mas acontece encontrarem-se na prisão pessoas com as quais não se desejaria conviver, e estou certo de que todos os forçados sofriam, ainda que inconscientemente, com aquela promiscuidade. (...)"
In Recordações da Casa dos Mortos (1862), Livros de Bolso/Publicações Europa-América, Setembro de 1972.
CONVERSAS EM TEMPOS DE PANDEMIA (2)
(AUTO-EXILADO NO SEU PRÓPRIO EGO)
(SEGUNDO ACTO)
Os dois amigos, ambos protegidos com máscara facial, voltam a entrar e a sentar-se na sala de estar da casa de Ernesto Lima Vitorino.
ERNESTO LIMA VITORINO: Olá, meu caro amigo. Como é que vamos de saúde?
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Vou indo bem, embora um tanto ou quanto preocupado com a forma como as nossas autoridades estão a encarar a pandemia.
ERNESTO LIMA VITORINO: Então, o que é que achas?
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Acho que o Governo está a laborar em grandes erros ao precipitar as medidas de desconfinamento, ao decretar medidas de quase normalização da vida no país, num momento em que a pandemia está longe de se ter ido embora. Em Portugal e no Mundo. Num momento em que aumentam diariamente os números de infectados, de óbitos, de internamentos em geral e de internamentos em UCI. Num momento em que várias dezenas de surtos de infecções se alastram pelo país, em lares de terceira de idade, havendo já mortes a registar entre os idosos atingidos pela doença. Num momento em que a mais perigosa das variantes, a variante Delta, é preponderante até mesmo nas pessoas já vacinadas. Em Portugal e no Mundo.
Ora, ou muito me engano, ou iremos ter um Outono quente e um Inverno escaldante. Em Portugal e no Mundo. Na minha modesta opinião, o comportamento do Governo é ditado por razões meramente eleitoralistas. Ou, se não é, parece que é, uma vez que as eleições autárquicas estão mesmo ao virar da esquina. Mais e mais grave: tudo com o beneplácito explícito do Presidente da República.
ERNESTO LIMA VITORINO: Tens toda a razão em tudo o que acabaste de explanar. E, no que toca ao Presidente da República, as coisas vão de mal a pior. E porquê? Porque o homem, a falar, não se coíbe de nada. Fala de tudo e mais alguma coisa. Anuncia, comenta e explica quase todas as medidas do Governo. Às vezes até parece que é o porta-voz do Executivo, numa clara competição com Mariana Vieira da Silva e Luís Marques Mendes. Mesmo lá longe, do Brasil, até se pronunciou a favor da vacinação dos jovens dos doze aos quinze anos. Posição que, mal chegou a Portugal, pressurosa e orgulhosamente reiterou.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Por outro lado, o primeiro-ministro e o Presidente da República (sempre esses dois) têm evidenciado uma confiança excessiva na eficácia das vacinas, quando já se admite abertamente (como nos Estados Unidos e outros países) a administração da terceira dose das inoculações e quando pessoas (supostamente) imunizadas com as duas tomas têm vindo a contrair o coronavírus e a morrer disso. Em Portugal e no Mundo. Como sabes, eu e tu estamos inoculados com as duas doses e, por isso e na qualidade de homens de alguma forma ligados à Ciência, não podemos ser acusados de negacionistas relativamente às vacinas contra a covid. Aliás, nem a respeito de nenhuma outra vacina, desde que produzida em tempo razoável e devidamente testada e aprovada pelas entidades competentes. Somos, sim, contra a confiança cega nas vacinas contra a covid. Somos, sim, a favor das vacinas anticoronavírus mas sem descurar as medidas de precaução adiante elencadas. É tudo muito incerto, quer no que diz respeito à evolução da doença, quer no que toca ao seu combate. Só há estas certezas: a utilidade das testagens maciças, do confinamento (de preferência, geral), do uso de máscaras, da lavagem frequente das mãos e do distanciamento físico. Tudo o resto só pode ser aventureirismo ou a total ausência de bom senso.
ERNESTO LIMA VITORINO : Agora, se me dás licença, e já que estamos com a mão na massa, ou seja, já que estamos a falar de assuntos internos, vale a pena tocar em mais um ou dois pontos dos nossos problemas. O primeiro deles tem a ver com os nossos impostos. A nossa carga fiscal é simplesmente aterradora. Ela está ao nível das mais elevadas da Europa. E para quê? Resposta: para alimentar o Estado Social português. Sim, o dispendiosíssimo Estado Social português e os seus três pilares: a Saúde Pública, a Educação Pública e a Segurança Social. O nosso desmesurado Estado Social é um luxo de países ricos (como a Alemanha, Reino Unido, França, Suíça, Países Baixos e países nórdicos) e, por isso, um luxo ao qual um país pobre como Portugal não se pode de todo dar. E, para sustentar esse gigantesco Estado Social, o que faz um Governo socialista convenientemente apoiado, nesta e noutras matérias, pela extrema-esquerda, ou seja, pelo Bloco de Esquerda e pelo Partdo Comunista? Aumenta sem cessar a dívida pública e carrega nos impostos. O pior é que os nossos impostos, em particular os directos, recaem essencialmente sobre a nossa depauperada classe média. A nossa esmifrada classe média que paga mais de metade dos impostos directos. Sim, é isso mesmo: mais de metade dos portugueses está isenta do pagamento de impostos, em particular dos impostos directos, sobrecarregando deste modo a classe média. O Dr. António Costa repete muitas vezes que o seu governo virou a página da austeridade, o que, tendo em conta a nossa elevada carga fiscal (sobretudo do IRS e do IRC) não passa de uma refinada mentira. O ministro das Finanças, ao falar da proposta do Orçamento do Estado para 2022, salientou que se trata de um Orçamento que, por um lado, não baixa nem aumenta os impostos e, por outro, não prevê medidas de austeridade. O Orçamento do Estado para 2022 não baixa nem aumenta os impostos e não prevê medidas de austeridade? Era só o que faltava se o Orçamento para 2022 aumentasse os impostos e insistisse mais na austeridade para além da que já existe. E o mais grave de tudo é que, neste capítulo, o Presidente da República nada diz. Não se ouve uma palavra sua de solidariedade para com a classe média. Ele, que é um lídimo membro e representante da classe média portuguesa, não se pronuncia sobre este autêntico esbulho da parte mais importante da população nacional.
Ora bem, é preciso ter em atenção que é na classe média que reside a chave do desenvolvimento de um país. Se a classe média é pobre e, ainda por cima, crivada de impostos, como é o caso da classe média portuguesa, o país nunca sairá da cepa torta. E mais: a própria crise demográfica, que afecta perigosamente Portugal, não terá solução sem uma classe média com grande poder de compra. Os países que desconhecem a crise da natalidade, como os Estados Unidos, Canadá, os Países Baixos e a Dinamarca, têm uma classe média com rendimentos que permitem suportar os elevados custos de ter três ou quatro filhos por casal.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Mas já que estamos a falar de situações preocupantes, não podemos ignorar o que se passa no Afeganistão. O regresso dos talibãs ao poder, naquele país, é algo que nos deve inquietar. Não se pode dar crédito ao que esses fundamentalistas (religiosos e políticos) prometem em matéria de respeito pelos direitos humanos. Tratar mal as mulheres, as crianças e as minorias em geral faz parte da natureza imutável dos talibãs e afins. E porque odeiam o modo de vida ocidental, irão inevitavelmente treinar e acoitar os terroristas nossos inimigos. Os Estados Unidos, o Canadá e os restantes países da cultura ocidental nao podem ficar de braços cruzados perante tais ameaças. E quanto mais cedo actuarem, melhor.
ERNESTO LIMA VITORINO : Good show! Jolly good show!
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Thank you, my dear friend.
ERNESTO LIMA VITORINO: Saindo da política e já que estamos a celebrar o sexagésimo aniversário do falecimento de Ernest Hemingway, informo-te, a este propósito, que reli há uns dias o seu conto As Neves do Kilimanjaro (1938) e revi a respectiva adaptação cinematográfica (1952), com o mesmo título, da autoria do cineasta americano Henry King (1886-1982). São duas obras-primas. O conto e o filme estão ao nível um do outro. O conto é parcialmente autobiográfico e o protagonista, o jornalista e escritor Harry Street, morre no fim. Já o filme é mais optimista no que se refere ao mesmo personagem. Este recupera da grave infecção que o prendia à cama de campanha e levanta-se para assistir (acompanhado da então mulher, Helen) à chegada do ansiosamente esperado avião que o iria transportar para a salvação. Exceptuando este último ponto e a criação de algumas figuras como Cynthia Green (talvez a mais importante das três mulheres do mesmo escritor) o filme é quase literalmente a biografia de Ernest Hemingway, pelo menos até 1952, ano em que a película foi realizada. O conto, tal como o filme, passa-se à volta de um escritor que, em África, aparentemente ao pé do Monte Kilimanjaro, e abatido pela doença, vive em flashback o seu passado feito de aventuras e dramas. Vale a pena ler-te uma pequena passagem da obra literária em que, numa das recordações de Harry Street, este, sem nomear explicitamente uma das suas mulheres, se refere claramente àquela que no filme, numa luminosa encarnação de Ava Gardner, dá pelo nome de Cynthia Green: (...) Recordou o tempo em que estivera sozinho em Constantinopla. Questionara em Paris, antes de ter partido. Vivera desbragadamente durante todo esse tempo e depois, quando esse tempo terminara, chegara à conclusão de que não conseguira matar a solidão, mas apenas torná-la pior. Escrevera então à primeira mulher, àquela que o abandonara, uma carta a contar-lhe que nunca fora capaz de matar a sua recordação...Que pensara vê-la à saída do Regence e sentira as pernas a vergar e enjoo no estômago e que seguira essa mulher que se parecia com ela, receoso de verificar que não era ela, receoso de perder a sensação que tivera. Que todas aquelas com quem dormira apenas tinham servido para sentir mais a sua falta. Que aquilo que lhe fizera não tinha a mínima importância desde que sabia não poder curar-se do amor que lhe tinha. Escrevera aquela carta no clube, a frio, e enviara-a para Nova Iorque, pedindo-lhe que escrevesse para o escritório de Paris. Parecera a melhor maneira de não haver extravios. E nessa noite, sentindo ainda mais a sua falta, com uma sensação íntima de vazio, vagueara pelas proximidades do Maxim's, abordara uma rapariga e levara-a a cear. Fora depois a um clube dançar com ela. (...) ( In As Neves do Kilimanjaro, Editora Livros do Brasil , Dezembro de 2013)
Confesso que gostei imenso da experiência de revisitar as duas obras - a literária e a cinematográfica. Devias fazer o mesmo, é uma sugestão minha.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Obrigado. Vou seguir o teu conselho. Nestas páginas também se assinala o aniversário do falecimento de James Joyce, o octogésimo, e, por isso, lembrei-me de celebrar o dia 16 de Junho, que, como tu sabes, é o chamado Bloomsday, ou seja, o dia de Bloom, o protagonista de Ulisses (1922), o mais célebre romance de James Joyce. Vou citar-te a este propósito Ian Pindar, na sua obra Joyce VIDA & ÉPOCA (EDIÇOES ASA, Setembro de 2006): O livro descreve os acontecimentos de um só dia em Dublin, quinta-feira, 16 de Junho de 1904 (o primeiro dia em que Joyce saiu com Nora), das oito da manhã às duas da madrugada, e segue as aventuras de Stephen Dedalus, regressado de Paris, e de um irlandês de meia-idade, Leopold Bloom. No último episódio, entramos nos pensamentos da sua mulher, Marion (Molly) Bloom (nome de solteira, Tweedy).
A mesma biografia diz mais num texto à parte: Bloomsday (o "Dia de Bloom", 16 de Junho) é comemorado em todo o mundo. Em Dublin, os amantes de Joyce reconstituem o itinerário de Leopold Bloom: rins de cordeiro grelhados ao pequeno-almoço; ao almoço, uma refeição ligeira no pub Davy Birne's (no número 21 de Duke Street), consistindo de uma sanduíche de gorgonzola com mostarda e um copo de vinho de Borgonha; à tarde, fígado e bacon, puré de batata com molho e uma caneca de cerveja preta fresca no Ormond Hotel (no número 8 de Upper Ormond Quay). O Bloomsday em Dublin atrai milhares de pessoas todos os anos e inclui leituras, reconstituições históricas, música, teatro, espectáculos de rua, concursos de sósias de James Joyce e grandes quantidades de Guinees.
E é tudo por hoje, meu caro amigo. Até ao próximo dia de conversa. Bye-bye. (Continua)
André Ventura para João Adelino Faria: Obrigadinho, ó João. A forma como me (des)trataste na entrevista que me fizeste, na RTP, foi um inestimável contributo, da tua parte, para os quase meio milhão de votos por mim obtidos nas eleições presidenciais.
CONVERSAS EM TEMPOS DE PANDEMIA
(VOANDO SOBRE UM NINHO DE CUCOS)
Não se procure nesta narrativa a exactidão geográfica, que nunca passa de um logro. Cabo Verde, por exemplo, não existe. Eu sei, porque vivi lá.
(Paráfrase da epígrafe do romance, O Salário do Medo (1950), da autoria do escritor francês, Georges Arnaud (1917-1987), e lançado em Portugal pelo Círculo de Leitores, em Agosto de 1990).
O passado é um país estrangeiro; lá fazem-se as coisas de maneira diferente.
(In prólogo do romance, O Mensageiro (1953), de L. P. Hartley (1895-1972), e publicado pela Editorial Presença em 1990).
OS CONVERSANTES
ERNESTO LIMA VITORINO, médico cardiologista reformado. Tem setenta e cinco anos de idade e gosta de dizer de si próprio que é um homem retirado e desligado, de qualquer forma, da vida activa. Ficou viúvo há já uns anos e não tem filhos. Por isso vive só. Nasceu, em África, numa das ex-colónias portuguesas, de onde saiu em meados dos anos sessenta do século XX. For ever. Ocupa o tempo a ler ficção, poesia (sobretudo escritores europeus e norte-americanos falecidos há mais de oitenta anos) e ensaios. Na sua lista de leituras não podiam faltar a Bíblia e também os autores da Grécia e Roma Antigas. Nos intervalos das leituras, ouve música clássica, vê cinema em DVD (e de igual modo nos diversos canais de televisão que passam filmes), séries policiais e os telejornais. Faz pós-graduações, por conta própria e com a duração de dois a três anos cada, em matérias como Literatura, Filosofia, História, Linguística, Teatro, Cinema, Estudos Bíblicos e Cultura Musical Clássica. Também escreve alguma coisa quando se sente inspirado e só quando se sente inspirado. Nunca experimentou a angústia da página em branco, entre outras razões, porque escreve por puro desejo de escrever e sem compromissos de qualquer espécie. Escreve, portanto, quando lhe apetece. Tem duas casas, uma na cidade e outra no campo. Esta última, que é uma vivenda grande e confortável, situa-se no Sul do território nacional e a poucos quilómetros de uma pequena cidade. A partir do momento em que foi declarado pela primeira vez o estado de emergência no país, mudou-se definitivamente para essa segunda residência, e levou consigo toda a sua biblioteca, os filmes e os discos. É nessa mesma moradia que recebe com alguma frequência a visita do seu velho amigo e vizinho, Afrânio Brito da Cunha, o segundo participante nestas conversas e acerca do qual daremos a seguir os pormenores.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Físico e ex-professor universitário recentemente aposentado. Setenta e um anos de idade e divorciado. Pai de dois filhos já casados e, por conseguinte, tal como acontece com o seu amigo Ernesto Lima Vitorino, também vive só. Tem dois netos ainda em idade escolar. Habita há muitos anos a mesma casa da província de onde pouco sai e onde, na companhia de livros, filmes e música da mais variada ordem, já se encontrava confinado quando o primeiro estado de emergência foi decretado e nesse regime se manteve até ao presente.
Os dois amigos entram simultaneamenrte na sala de estar da casa de Ernesto Lima Vitorino e sentam-se em frente um do outro, cada um no seu cadeirão, e separados por uma ampla mesa de centro.
ERNESTO LIMA VITORINO: Então meu caro amigo, o que me contas desde há três dias? Há novidades? Refiro-me, obviamente, às novidades para além das conhecidas de toda a gente.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Em termos gerais, novidades não faltam. Mas ontem lembrei-me de rever o filme americano, Voando Sobre Um Ninho de Cucos, (1975), de Milos Forman (1932-2018) e isso deixou-me a reflectir sobre as nossas eleições presidenciais do dia 24 de Janeiro.
ERNESTO LIMA VITORINO: Ah, sim? E então? Qual é a relação entre as duas coisas?
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Já vais ver. Como sabes, os cucos são aves que não têm ninho próprio. Quer dizer, servem-se dos ninhos de outras aves para neles porem os seus ovos. Por isso tudo, Voando Sobre Um Ninho de Cucos (o título do filme) é, por si só, um absurdo. Foi esse absurdo que me levou a pensar num aspecto pouco ortodoxo, e porventura surreal, da campanha para as últimas eleições presidenciais. Ora, assim como os cucos pôem os seus ovos em ninhos alheios, houve partidos que, na mesma campanha, fizeram apelos aos seus militantes e votantes no sentido de porem os seus ovos, perdão, no sentido de porem os seus votos em candidatos presidenciais de outros partidos. Foi o caso do PAN e do LIVRE que não só deixaram de apresentar candidatos próprios, como deram indicações para que os seus militantes votassem na candidata, supostamente independente, mas oriunda do Partido Socialista, Ana Gomes. Mas há mais. O Partido Socialista, esse, não só não apresentou candidatura própria como deu liberdade de voto aos seus militantes. Ou seja, estes podiam votar em quem quisessem e lhes apetecesse. E de que forma votaram esses militantes do PS? Ora bem, o voto é secreto mas sabe-se que os socialistas distribuiram os seus ovos, desculpa, os socialistas distribuiram os seus votos pelos candidatos Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Gomes e até mesmo por Marisa Matias, a candidata do Bloco de Esquerda. Os socialistas dividiram-se por três ninhos, I'm sorry, os socialistas dividiram-se por três candidatos diferentes na colocação dos seus votos. Isto é, votaram em candidatos de outras forças partidárias porque o seu partido, pura e simplesmente, não apresentou candidatura própria.
ERNESTO LIMA VITORINO: Estou a ver o teu ponto de vista e concordo contigo. Trata-se de uma analogia muito pertinente. No caso do PAN e do LIVRE, a coisa torna-se um pouco mais esquisita. Porquê? Porque esses dois partidos perderam na Assembleia da República uma deputada cada e o LIVRE ficou desse modo sem representação parlamentar. Logo, o apelo ao voto em candidatos que não os seus, deixa toda a gente com a impressão de que os mesmos dois partidos quiseram fugir deliberadamente ao escrutínio directo do povo português para assim não porem a descoberto a sua actual fraqueza eleitoral. Ou seja, no tocante ao peso eleitoral de cada um dos dois partidos, os portugueses ficaram sem quaisquer referências ou indicações.
AFRÂNIO BRITO DA CUNHA: Moral da história: os eleitores do Partido Socialista, do PAN e do LIVRE foram os cucos das nossas últimas eleições presidenciais.
ERNESTO LIMA VITORINO: No meu caso, o tema de conversa, para começar, prende-se com as últimas medidas de desconfinamento anunciadas pelo primeiro-ministro. Sim, eu sei que se trata de um desconfinamento gradual e cauteloso. Uma coisa a conta-gotas. Uma coisa às pinguinhas. E não podia ser de outra forma. A guerra contra a pandemia está longe de estar ganha. No nosso país e lá fora. Há muitos perigos à espreita. Desde as três variantes da Covid-19, que vão proliferando pelo mundo e sobretudo pela Europa, à ameaça da quarta vaga (ou terceira vaga?) que pode surgir entre nós a partir da Primavera e eventualmente acentuar-se com as celebrações da Páscoa. Neste momento, vários países europeus estão confrontados com a terceira vaga da pandemia e a palavra de ordem volta a ser confinar. Concordo inteiramente com o presidente da República e o primeiro-ministro: ainda é cedo para baixar a guarda. E quanto às vacinas, ainda é cedo para extrair conclusões relativamente à sua eficácia e segurança. Aguardemos.
Agora se me dás licença, vou falar um pouco da grande Virginia Woolf (1882-1941) e acerca de uma frase sua que me deixou a meditar. A frase, li-a eu no seu estudo intitulado Horas Numa Biblioteca, de 1916, integrado no seu livro Ensaios Escolhidos (Relógio d'Água, Maio de 2014), e diz o seguinte: (...) Mas, comentários gerais à parte, não seria difícil provar com base num conjunto de factos que a melhor época para a leitura é a que medeia entre os dezoito e os vinte e quatro anos (...).
Terá ela razão no concernente ao lapso de tempo que vai dos dezoito aos vinte e quatro anos, como o melhor para a leitura? Penso que sim, embora, no que respeita á duração do mesmo período, possa haver alguma variação de pessoa para pessoa. No meu caso, foi quase de certeza entre os dezasseis e os vinte e cinco anos. E recordo-me muito bem da maior parte dos livros e dos autores então lidos. Mas voltarei a este ponto mais adiante. Para já, convirá reter o que a mesma romancista escreve imediatamente a seguir à frase acima transcrita: "A lista do que é lido nesse período leva ao desespero o coração dos mais velhos. Não é só termos lido muitos livros, mas termos tido tais livros para ler. Se desejarmos refrescar a memória, peguemos num desses caderninhos de apontamentos que todos nós, mais cedo ou mais tarde, tivemos a paixão de escrevinhar. É verdade que a maior parte das páginas está em branco; mas no início havemos de encontrar umas quantas maravilhosamente preenchidas com uma caligrafia surpreendemente legível. Nelas escrevemos os nomes de grandes escritores por ordem do seu mérito: para elas copiámos passagens significativas dos clássicos; nelas inscrevemos listas de livros a ler; e, o mais interessante de tudo, também listas de livros já lidos, que o leitor confirma com juvenil vaidade com um traço a tinta vermelha. Citaremos uma lista de livros que alguém leu num Janeiro passado aos vinte anos, a maior parte deles provavelmente pela primeira vez. 1. Rhoda Fleming, 2. The Shaving of Shagpat, 3. Tom Jones, 4. The Laodicean, 5. Psychology, de Dewey, 6. O Livro de Jó, 7. Discourse de Poesie, de Webbe, 8. The Duchess of Malfi, 9. The Ravenger's Tragedy (...)"
Não fiz qualquer relação de livros lidos ao longo da minha vida e isso nem sequer me passou pela cabeça. Sei-os quase de cor. Como já disse, de um modo geral lembro-me bem dos livros e autores lidos no período compreendido entre os meus dezasseis e vinte e cinco anos. Falando apenas de autores (para não alongar muito a exposição), logo à cabeça posso enumerar Stefan Zweig (ficção, biografias e ensaios); Júlio Verne é inevitável ainda antes dos vinte anos. Também o são os criadores de romances policiais como Arthur Conan Doyle, Georges Simenon, Agatha Christie, Peter Cheyney e Ellery Queen (uma dupla de primos nova-iorquinos); a partir dos vinte anos, sem pôr de lado os policiais, aventurei-me em autores com outas preocupações, tais como Gil Vicente, Luís de Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, José Cardoso Pires, Fernando Namora, Oscar Wilde, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, John Steinbeck, Ernest Hemingway, Arthur Miller, Somerset Maugham, Bertrand Russel, C. W. Ceram, Will Durant e Franz Kafka. Os livros destes autores, a par do cinema, deram-me muita informação e colmataram numa certa medida as minhas lacunas culturais. O que só seria possível desse modo, uma vez que os conhecimentos obtidos no liceu, além de elementares, eram administrados por professores que primavam pela ignorância e mediocridade. Os professores, que me calharam no liceu por onde andei, sabiam quando muito a lição do dia e muitas vezes nem sequer isso sabiam. Hoje, tenho inveja dos jovens alunos liceais que tiveram como mestres as seguintes sumidades da cultura e intelectualidade portuguesas: Óscar Lopes, Vergílio Ferreira, Agostinho da Silva, José Hermano Saraiva, Augusto Abelaira, Urbano Tavares Rodrigues, António Gedeão (Rómulo de Carvalho), e José Régio.
Mas voltemos aos livros. O que me interessa, neste tema de que venho falando, não é propriamente enumerar, ou exibir, os autores que eu li na minha adolescência e juventude, embora isso tenha a sua importância. O que me importa agora é expressar a minha raiva por não ter lido as seguintes obras (e seus autores) na minha época dos dezasseis aos vinte e cinco anos, e que há muito fazem parte da minha biblioteca actual: 1. Bíblia, 2. Histórias, de Heródoto, 3. Anábase, de Xenofonte, 4. Ensaios, de Montaigne, 5. História da Filosofia Ocidental, de Bertrand Russel, 6. Breve História da Civilização,de Will Durant, 7. História Universal, de H. G. Wells, 8. América e os Americanos, 9. Correspondente de Guerra, 10. Viagens Com o Charley, os três de John Steinbeck, 11. Paris é uma Festa, de Ernest Hemingway e 12. Andanças com Heródoto, de Ryszard Kapuscinski.
Vou deter-me aqui para divagar um pouco sobre vários temas relacionados entre si e a partir deste último título (Andanças com Heródoto, publicado na Polónia pela primeira vez em 2004) e do seu autor (Ryszard Kapunscinski, jornalista, nascido em 1932 e falecido em 2007). Para isso e para começar, nada melhor do que transcrever o que se diz na contracapa da edição portuguesa (Livros do Brasil, 2020) da mesma obra: "Recém-licenciado, a trabalhar para uma agência de notícias polaca e com um desejo imenso de conhecer outros povos além-fronteiras, Kapunscinski pede para partir em reportagem. Oferecido pela sua redactora-chefe, o jovem jornalista leva consigo, durante vários anos, um volume das Histórias de Heródoto, o historiador grego que vivera dois mil e quinhentos anos antes de si. É através das reflexões do autor clássico que atravessa a Índia, a China, a Ásia Menor e África, nas suas Andanças com Heródoto, um relato de viagem, que ainda hoje faz reflectir sobre todas as fronteiras que nos separam e a humanidade que nos une. Se Heródoto é o pai da História, Kapunscinski é certamente o mestre da reportagem."
Um livro bem escrito (e de inegável interesse), que medita sobre o jornalismo, nomeadamente sobre o jornalismo de reportagem e não só. O livro é também uma reflexão sobre história, política, geografia, civilização, etc. mas um livro que, relativamente ao seu tema fundamental, andanças com Heródoto, padece de um pequeno defeito: a falta de originalidade. Sim, escrever, e publicar em livro, sobre alguém que viaja com o volume das Histórias de Heródoto, na bagagem, lendo-o e citando várias das suas passagens, ao longo dessa mesma obra e das viagens, não é propriamente um tema original. Porquê? Porque Michael Ondaatje (1942) já o havia feito no seu romance, O Doente Inglês, dado à estampa em 1992, portanto doze anos antes, e transposto para o cinema em 1996 pelo cineasta americano Anthony Minghella (1954-2008). O protagonista do romance (e do filme), o conde húngaro Ladislau de Almásy, é um leitor apaixonado das Histórias de Heródoto e por causa disso viaja acompanhado desse livro nas suas deambulações, nos anos 1930, pelo deserto do Sara, no Sul do Cairo, integrado num grupo de cartógrafos e arqueólogos ao serviço da Sociedade de Geografia de Londres. O referido exemplar de Histórias de Heródoto acompanha-o mesmo quando, depois de gravemente queimado e desfigurado, é salvo por uma tribo qualquer do deserto, e levado, em 1944, para a base inglesa de Siwa, e dali para Itália, mais precisamente para um antigo mosteiro, quase em ruínas, a norte da cidade de Florença. Não resisto à tentação de citar-te este elucidativo trecho do romance: (...) Fala em fragmentos soltos a respeito dos oásis, dos últimos Médicis, do estilo da prosa de Kipling, da mulher que o mordeu na carne. E no seu livro de recortes, na sua edição de 1890 das Histórias de Heródoto, há outros fragmentos - mapas, apontamentos diarísticos, textos em muitas línguas, parágrafos recortados de outros livros. Só falta o seu próprio nome. Continua a não haver o mais pequeno indício quanto à sua verdadeira identidade, continua anónimo, sem patente, número de batalhão ou de esquadrilha. As referências inseridas no livro são todas anteriores à guerra, descrições dos desertos do Egipto e da Líbia nos anos 30, entremeadas de referências à arte das cavernas ou às galerias de arte, de apontamentos diarísticos na sua caligrafia miúda (...)
É no mencionado mosteiro que Almasy vive os seus últimos meses de vida, aos cuidados de uma enfermeira canadiana, e onde, no seu leito de enfermo, vai recordando o seu passado recente (o passado, esse longínquo país estrangeiro onde se fazem as coisas de maneira diferente), sobretudo o seu romance escaldante com uma mulher casada, que acaba em tragédia. Tudo isto e talvez muito mais está também no filme, uma das grandes obras-primas cinematográficas do Século XX. Um belo filme que é igualmente, entre outras coisas, uma homenagem ao cinema com citações explícitas de películas como Lawrence da Arábia (1962) de David Lean (as sequências aéreas e a dramática tempestade de areia no deserto do Sara) de Casablanca (1942) de Michael Curtiz (o encontro, aparentemente casual, de Almasy e Katharina no mercado árabe do Cairo), e As Neves do Kilimanjaro (1952), de Henry King (as recordações do seu passado recente, tendo como epicentro a história do seu trágico amor). Esta última película é um excelente relato da vida Ernest Hemingway, baseado no conto homónimo do mesmo escritor, e sobre os quais (o filme e a obra-prima literária) talvez valha a pena falar num dos nossos próximos encontros. E é tudo por ora. Vamos à vida. (Continua).
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